sigoescrevendo

Um manifesto de palavras sob a regência de cada momento.


Entre homens e meninos


Paris, 2013

Um dia tive um sonho de menino.

Aquela sequência de acontecimentos nada cinzas e cheios de vida. Um momento que minha única atividade era ser feliz. Que meus problemas eram logo superados e que eu era bobo suficiente para não dá-los tanta atenção.

Nesse dia, me lembro, fui perguntado sobre o que eu queria ser quando crescer. Não soube responder, pois viver já me bastava. Como eu seria capaz de responder isso se era tão mais importante decidir se eu iria jogar vídeo game ou assistir o desenho animado que acabara de começar?

Um doce sonho de menino.

Intrigava-me como contas que chegavam pelo correio causavam mal-estar na “gente grande”. Um quarto escuro me parecia tão mais amedrontador que este pequeno pedaço de papel.

Quando meu maior medo era do escuro, me confortava saber que meu maior desafio fora conseguir andar. Eu, que já havia ficado de pé sozinho, agora criava a minha própria distância do horizonte. Mas o escuro ainda dava medo mesmo assim.

Naquele dia, meu amanhã só aparecia mesmo depois do hoje. Era sincero comigo e com todos ao meu redor. Lembro-me como eu era estranho à algumas coisas novas que a “gente grande” fazia.

Mas logo deixava de pensar e ia me divertir.

Hoje, confuso, não sei dizer se sonhei com a vida que tinha ou apenas lembrei do sonho que eu um dia vivi.

Só sei que, com o passar do tempo, aquela vida do menino mais me parecia um sonho mesmo. Tão simples e tão distante. Com uma ingênua sabedoria, a felicidade era o caminho e a razão primária de tudo.

Das camuflagens que hoje visto, dos problemas que hoje enxergo e do amanha que hoje vivo, fiz daquela vida apenas um sonho e vi o menino tornar-se o homem que não entendia.

Hoje não tenho mais medo do escuro. Pior, tenho medo do que é cinza.

Quem diria que, no final das contas, entre aquele menino e eu, ele vivia enquanto eu sonhava.

(Marcelo Penteado)


3 respostas para “Entre homens e meninos”

  1. Aprecio a capacidade deste autor em perpassar por várias possibilidades textuais. Encanta-me sentir nele outras vozes, outros autores. Múltiplas visões. A simplicidade com que aborda o tempo, o passado, a infância, trazem à tona minhas lembranças de um passado tão distante.
    Sempre que leio seus textos sinto intertextualidades, sutis, nada igual, nem semelhante, mas lembranças de uma vida em meio a inúmeros autores, muitas leituras, diversos contextos. Tenho a intuição que és um autor, “pronto”… incalculáveis autores permearam esta minha existência. Espero um dia poder entrar numa livraria e encontrá-lo, em formato de obra, de autor “pronto”.
    …“Das camuflagens que hoje visto, dos problemas que hoje enxergo e do amanhã que hoje vivo, fiz daquela vida apenas um sonho e vi o menino tornar-se o homem que não entendia.”

    TRADUZIR-SE

    Uma parte de mim
    é todo mundo:
    outra parte é ninguém:
    fundo sem fundo.

    uma parte de mim
    é multidão:
    outra parte estranheza
    e solidão.

    Uma parte de mim
    pesa, pondera:
    outra parte
    delira.

    Uma parte de mim
    é permanente:
    outra parte
    se sabe de repente.

    Uma parte de mim
    é só vertigem:
    outra parte,
    linguagem.

    Traduzir-se uma parte
    na outra parte
    – que é uma questão
    de vida ou morte –
    será arte?
    Ferreira Gullar

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    • De novo, um final com enorme grandeza de alguém que está crescendo na sua vida,com dignidade………publique em forma de livro, eu compraria com prazer!

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