
Da minha infância não levo nada material.
Se as roupas já não me vestem mais, os velhos brinquedos tampouco me servem. Daquelas figurinhas que eu colecionava e dos tantos álbuns que eu quase completei, nenhum deles tem mais espaço em minhas atuais coleções. Daquele tempo, trago comigo uma porção de risadas e cicatrizes de uns velhos machucados.
Lembro-me, também, de amigos que não vejo desde aquela época, cada rosto inocentemente travesso. Chego a rir sozinho das tantas descobertas e aventuras que nos metíamos. Por onde será que eles andam agora…
Da minha adolescência, creio, também não levo nada físico.
Sumi com aqueles CDs e nunca mais vi o pôster daquela banda que nem é mais a minha favorita. Até minha memória deixou de lado trechos seletos de velhas canções. Perdi o quadro que fiz com o ingresso, mas carrego comigo aquele show – como poderia esquecê-lo – talvez tenha sido a primeira vez em minha vida que me senti independente.
Já não sei mais onde está o cordão que ganhei da minha primeira namorada. Daquele dia, lembro-me apenas da marca que fizemos na árvore com as iniciais dos nossos nomes. Aliás, lembro-me de tantos momentos que jurávamos ser eternos. De todos os presentes que trocamos, hoje levo comigo apenas boas histórias e experiências.
Da adolescência carrego com carinho as minhas primeiras viagens, as primeiras bebedeiras, os momentos compartilhados com aqueles amigos que, quem diria, são meus amigos até hoje.
Na verdade, vou me contrariar. Tenho lembranças físicas sim. Às vezes, inclusive, recorro às fotos que ficam lá em cima do armário. Perco horas naquela gaveta empoeirada, e encontro em cada recordação um atalho para reaquecer minha vida. Não chego a voltar no tempo, mas nem precisaria. Dou àquela velha experiência mais um dia de vida, faço a prolongar-se.
E talvez isso queira dizer algo: de repente, entre o preço e a finitude do que é material, ou entre as inúmeras ilusões que nos entretêm, o que verdadeiramente importa desta vida está no valor e na eternidade das boas experiências.
Hoje, cada vez mais, busco entender e quantificar o valor de cada momento, de cada sorriso e de cada escolha. Se prestigio boas experiências, automaticamente fabrico boas memórias. E é isso que espero levar; este é o verdadeiro fardo de nossa riqueza; pois, do que levo do meu passado, nada físico levamos desta vida.
(Marcelo Penteado)
6 respostas para “Do que levamos desta vida”
Sinto-me tão protagonista de seus textos que já me faço “íntima” de sua obra, imortalizando-a em minha tão corriqueira e insignificante, existência.
“Hoje, cada vez mais, busco entender e quantificar o valor de cada momento, de cada sorriso e de cada escolha. Se prestigio boas experiências, automaticamente fabrico boas memórias. E é isso que espero levar; este é o verdadeiro fardo de nossa riqueza; pois, do que levo do meu passado, nada físico levamos desta vida.”
Quero lembrar de Mercedes Sosa em suas palavras… “isso que espero levar; este é o verdadeiro fardo de nossa riqueza; pois, do que levo do meu passado, nada físico levamos desta vida.” Muito obrigada por sempre me surpreender com seus textos, promovendo-me vastas reflexões.
Eu só peço a Deus
Mercedes Sosa
Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria
Eu só peço a Deus
Que a injustiça não me seja indiferente
Pois não posso dar a outra face
Se já fui machucado brutalmente
Eu só peço a Deus
Que a guerra não me seja indiferente
É um monstro grande, pisa forte
Toda foram de inocência desta gente
É um monstro grande, pisa forte
Toda foram de inocência desta gente
CurtirCurtir
Texto muito bom! Leio, releio e me identifico cada vez mais.
O fardo de sair vivendo e acabar se deixando por ai.
CurtirCurtir
Prestigiar boas experiências… preciso me ater nisso!
CurtirCurtir
Lindo e verdadeiro ao meu ponto de ver a vida
CurtirCurtir
lindo mesmo.
CurtirCurtir
Perfeito! Gostaria de ter esse desprendimento para com o material e boa memoria para com os acontecimentos. Ainda não cheguei lá…. quem sabe um dia.
CurtirCurtir