
Ou não percebi que a vida trocou suas roupas ou eu ando meio offlline demais.
Meus valores entraram em coma e os tempos se desenham confusos. Costumava acreditar que compartilhar significava doar. No meu viver, o que eu curtia pouco tinha a ver com o que aos outros eu demostrava.
Então algo aconteceu.
Publicar tornou-se um divisor de águas. Um selo que autentica e desqualifica a própria vida. Uma projeção irreal de doces mentiras. A privacidade virou clichê.
Parece que a vida ganhou novos planos. A felicidade agora não se contenta mais com o momento. Ela é vaidosa, precisa ser vista por outros olhos, comentadas por outras bocas. Quer expandir-se a cada curtida. O que antes era fato, hoje é foto.
Temo que desaprendi algumas velhas maneiras.
Em tempos de exposição, o sorriso é pop. Reflete o flash enquanto a pose não perde tempo. Somos a versão editada e replicada de nós mesmos. Nos aplicamos filtros e nos definimos em poucas palavras. Micro caracteres ansiando por macro exposição.
Amizades agora se solicitam. E, assim, se aceitam! Pessoas reduzem-se a nomes; contatos reduzem-se a cliques; relacionamentos através de conexões invisíveis. Eu sigo, tu segues – onde vamos parar?
Agora posso saber de tudo. Por onde anda, com quem estava e quando foi. O massacre da curiosidade esvazia o valor das perguntas. Se o olho passa a fiscalizar tantos fatos, para que vai olhar em outros olhos?
E nada para.
A angústia é em real time porque sempre há alguém fazendo questão de vociferar si mesmo. A vida virou uma feira e cada qual com seu stand propagando seus eventos. Um leilão de felicidade medido por votos de inveja branca.
Pior, nossa biografia em constante construção é continuamente avaliada. Podemos ser aprovados ou menos acolhidos. Nosso sentimento de pertencimento passa a ser guiado pela repercussão das nossas difusões virtuais. Uma “tabloidização” das mais vulgares da vida regular.
E assim a vida tem seguido. Reduzida às curtidas. Encurtando-se. Roteirizando-se por caminhos de vidro. Uma transparência maquiada, explanações dissimuladas e inconvenientes.
Neste reino de aparências o ego e a vaidade se travestem de alegria.
A felicidade tornou-se um espetáculo, que tem prazer em se exibir. Um teatro vago e lamentável. Insuportável. Mas que vivência mais tangível!
Ou, de repente, a vida realmente trocou suas medidas ou, de fato, ando offline demais.
(Marcelo Penteado)
9 respostas para “Eu curto, tu curtes, a vida encurta”
Pode-se encontrar amigos de quem nada se sabia há “aníssimos”? Claro. Podemos ser, de repente não mais que de repente, conectados por pedidos de “amizade” de “paqueras” (palavrinha antiga, arcaica demodé) e outros que tais? Claro. Mas, por outro lado, fica-se sabendo de situações que não nos interessam a mínima: quem almoçou onde, quem fez “academia”, quem tá pegando quem, isso sem mencionarmos as “correntes” de fé, de ganho de dinheiro fácil, de ajuda a desaparecidos… E você percebe que suas tentativas de por um pouquinho de fermento (leitura de textos, assistir performances, pensar sobre situações curiosas) nessa massa que rola aí não encontra respaldo (curtir, comentar, compartilhar) da parte de ninguém. Na verdade, Marcelo, essas mídias sociais são os “quinze minutos de fama” da imensa (mas, “bota imensa nisso”) maioria das pessoas.
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Tem sua exceções na maneira como aproveitar as modernas ” ferramentas sociais ” . Aos 35 anos encontrei amigas que sempre me recordei que nao nos víamos há 15 … Pois ate então nao havia internet , câmeras digitais e tal narcisismo e vouverimos pela vida alheia .
Mas ainda esta a essência e a mesma .. Uma carta escrita a mão , um cartão postal na caixa de correio … São surpresas agradáveis e memoráveis . O que vale e a essência do seu ser e nao esses completos tecnológicos … Seus textos e crônicas são lindos , sensível , sinceros e bem escritos …
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Este autor está sempre a nos surpreender, com inusitadas e bem pontuadas reflexões, contemporaneamente, entrelaçadas:” Costumava acreditar que compartilhar significava doar. No meu viver, o que eu curtia pouco tinha a ver com o que aos outros eu demonstrava.(…) Ou, de repente, a vida realmente trocou suas medidas ou, de fato, ando offline demais.”
Esse texto precisa de uma “trilha sonora”, irreverente, que nos possibilite avaliar as conquistas que o passado cristalizou, nas evasivas modernidades do presente, construindo, talvez, um descartável futuro… não sei?… será que é o que queremos?!… a cada um a responsabilidade de suas escolhas.
Pela Internet
Gilberto Gil
Criar meu web site
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleje
Que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu velho orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé
Um barco que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve meu e-mail até Calcutá
Depois de um hot-link
Num site de Helsinque
Para abastecer
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
De Connecticut acessar
O chefe da milícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar
Um vírus pra atacar programas no Japão
Eu quero entrar na rede pra contactar
Os lares do Nepal, os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na Praça Onze tem um videopôquer para se jogar
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Marcelo , incrível sua capacidade e sensibilidade em externar a superficidade cotidiana de vidas. Me toca muito… sempre que evidencia os valores que a vida nos oferece para ser vivida intensamente, que estão sendo atropelados. Como sempre excelente texto.
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Sensibilidade!!! É isso tudo que vivemos e sentimos e por vezes não conseguimos ver com esses olhos ou expressar em palavras como vc! PARABENSSSSSSSSSSS PELO TEXTO! Deus o abençoe mais e mais…
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Como posso segui-lo ou ver suas publicacoes pelo face?
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Ola, Eneida!
Você pode acompanhar tudo pela página Sigoescrevendo, o endereço segue abaixo:
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Muito 10!
Off ou On você aparece, escreve, eu descubro, leio, penso; você transmite e eu reflito!
E então eu aplaudo seus escritos, ou seria curto?!
😉
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Compreendo e compartilho sua visão. Mesma sensação de desgosto, seguida de desprezo. Entretanto, aprendi que a ferramenta nunca é “a culpada”! A culpa está nas mãos de quem as usa de forma vazia, pobre (de espírito)….
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