
Janelas ainda abertas, projetos inacabados. O sorriso sarcástico do prazo. Companhia inesquecível. Um dedo de café na xícara. Nem mais nem menos que isso. Frio. A sobra daquilo que já foi quente. Tal qual o último suspiro daquele que reflete o espelho.
Olheira sendo convidada a ficar depois do combinado. Carreatas e mais carreatas de sono chegando sem parar. Bocejos desesperados. Se eles não forem ouvidos, o cansaço falará.
A mesa escuta lamentações enquanto a parede consola. Porções de papéis envolvem o ambiente. Não se desenvolvem. Não são fluídos. Não passam de rascunhos.
Fios, carregadores e tantas outras coisas. Tampas de caneta viram passatempo. Canetas estas que, às vezes, nem mais escrevem. Pontas cansadas, quase sem tinta. Um corpo sem ânimo. Soa familiar.
A roda, que já foi a maior invenção da humanidade, limita-se a sustentar uma cadeira tão previsível. Um pouquinho para lá; um pouco para cá. Movimentos circulares que não levam a lugar nenhum.
Geralmente, sempre por perto, o ponteiro do relógio é o chicote dos novos tempos. Se perceber, inclusive, faz barulho também. A dor, no entanto, é moderna. Ansiedade, angústia, preocupação. Nada físico.
Ao alcance das mãos, está o celular. É o portal que sempre prova que há vida ativa em algum outro lugar que não o seu. Uma esperança ou um castigo?
Resultados, objetivos e metas. Muita pressão para pouco prazer. Orgulho de concluir e não de criar. Se entrarmos no campo dos valores, tudo termina em preço. Melhor terminar por aqui.
(Marcelo Penteado)
3 respostas para “Viés”
“Viés”… análise que não respeite os princípios da imparcialidade. Muito interessante esse título. Adequado. Texto por demais provocante. Seduz o leitor, meio interlocutor, a lê-lo, várias vezes e se envolver na imensa parcial imparcialidade, profundamente sedutora. Aí… chego neste momento de tão encantadora obra: “Geralmente, sempre por perto, o ponteiro do relógio é o chicote dos novos tempos. Se perceber, inclusive, faz barulho também. A dor, no entanto, é moderna. Ansiedade, angústia, preocupação. Nada físico.”
Como não se identificar.
Como sou alma leitora, surge Caeiro, nítido, translúcido, como a alfinetar minha existência… «O que é a realidade? Eu quero só a realidade, as coisas sem presente.»
Vive, dizes, no presente,
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Alberto Caeiro, in “Poemas Inconjuntos”
CurtirCurtir
Puta que pariu (desculpe o termo) que texto!
CurtirCurtir
Perfeito como sempre! me identifico muito com teus textos! Obrigada
CurtirCurtir