Jamais com elas briguei, pronto afirmo. Nem com ninguém. Somente ao tempo prestei minha ressignificação.
Aliás, a natureza do desentendimento reside nua nos campos internos. Isso espirro sem provas, a não ser do sentimento teimoso em dessa forma sair.
Resgatei a fluidez ao entender que o equilíbrio se restabelece no polimento dos detalhes. Todo dia conta.
Cada esforço recompensa-se em alívio no presente. Qualquer instante é uma dose – a ser brindada, lembrada, tragada.
Todas as vezes que percebe-se o desvio, o envolvimento confortável em depreciar-se, a fertilidade da hesitação jamais pode superar o desconforto de agir.
Gosto de viajar por ser uma experiência que, para começar, é preciso sair.
Um exercício de deixar, um exercício de se abrir. Por excesso de naturalidade, uma experiência transitória.
Viajar pressente atitude destemida.
Sensibiliza o olhar a fazer mais de uma pergunta antes de dizer o que viu. Com o tempo, ora apelidado de bagagem, fala-se mais até à nossa mente e menos pro mundo de fora.
É tão melhor permitir ao mundo nos ter algo a dizer.
A viagem entrega à vida um sentido de estar. O valor de ter existido sob diversas combinações e ter convivido com outras influências culturais, em outro tempo presente. Perceber que colecionar momentos é também um tipo de riqueza ao alcance de nossas escolhas.
Através das viagens, acréscimos. Do mais que vejo, menos falo e tanto ouço. Bagunço o que eu sinto e acesso outros entendimentos.
Diferente da maioria das experiências, sua lógica nasce diferente – da saída ao início, do momento ao recomeço. Reconstrução. A mente se reabastece de diferentes percepções apresentadas no caminho. E em cada parada também.
É preciso ter bastante cuidado para não sobrecarregar a mente com ensaios sobre verdades.
São tantas coisas sendo ditas, por tantos heróis de si mesmos. Gurus de palavras bem orquestradas.
A causa, provavelmente nobre, de iluminar caminhos terceiros pode camuflar a frustração de quem sequer encontrou-se por completo.
Indispensável, por sua vez, a oxigenação de estar perdido. Do sentimento à percepção. O jogo de xadrez com a mente, a conversa múltipla de uma só voz. A desproporção plural e superior de pensamentos por segundo.
A indecisão se alimenta de possibilidades que procriam na mente, em um descontrole desenfreado.
Tudo que se sente enquanto não se sabe com exatidão. Até perceber a beleza de confundir no horizonte esperança e consolação. Tolerar o medo do não saber é o que nos reconecta a confiar nos próprios sentidos.
Como passar por isso, se não só?
Embora a inércia seja a vitória da morte, a vida não é exatamente seu oposto. Há no conflito o combustível da alternância – a mais pura fração incandescente do encontro.
Um momento é a sobreposição de outro. O espaço encontra significado entre uma vírgula e a eternidade. Ao final, apesar do tanto que se fala, precioso é o que se escuta no silêncio.
Entende o mundo com a sola do pé. Precisa sentir, sujar-se, entregar-se em toque e alma para saber o que é. Corre com o vento, contra o vento, sem sequer ligar pra ele. Faz seguir a direção da descoberta.
Pisa no gramado, em companhia ao jardim. Não lhe pertence fugir da lama. Vê nas folhas um caminho a desviar. Brinca, brinca até encontrar outro motivo para brincar.
Criança não precisa de nada, por já ter tudo. Sobe o portão, escala a mureta. Busca no vazio a importância que ele tem. Afinal, é divertido dar significado às coisas. Toca na árvore, antes subi-la. E decide, tão justa a transposição dos segundos. Olha, toca, e deixa. Com a pureza, ainda, do anjo que nem se lembra ser. Ou, pela realidade, confunde-se.
Criança, quando fica em silêncio, é por escutar o cochicho da verdade. Sua vontade plena de querer viver, brincar. Corre, pula, tira o cabelo do rosto. Observa, sente e vai. Até quando volta, vai. Tudo é novo, intrigante, dá gargalhadas de prazer.
Criança anda despreocupada. Pega um graveto no chão sem pensar que pode ter formiga. Corre atrás do passarinho e só não voa por que não quer. Dá voz à natureza das coisas. Apoia num galho bamba, que há anos não havia de ser tocado. Este galho, que podia ser eu. Que te olha de longe, embora te respire ofegante. Nostálgico como a luz que denuncia o outono.
Crianças vão como o próprio tempo. No único sentido que se denota – onde o presente abre a gaiola para o futuro. Adulto nasce quando, ao escorregar o olhar em outras direções, compõe o momento com entoações de saudades.
Todos os dias uma avalanche de informações inunda nossa mente. Um múltiplo acúmulo de estímulos, projeções e lembranças.
Fatos mal tragados, doses sobre doses. O excesso é uma medida que não cabe no tempo.
Em consequência às inúmeras distrações, amplifica-se, também, o desafio em saber ouvir a própria voz. Os pensamentos que gritam sob os escombros.
O reverbero genuíno da matriz que vem de dentro.
Eis uma boa meta – diária – organizar, pois, oxigenar, a mente. Vasculhar, atento, os escombros dentro de si. Resgatar, guiado pelos gritos ecoados de quem depende de ajuda para poder encontrar uma saída.
Resgatar o manifesto que ainda resiste ao despejo.
Somos, talvez, mais destinados a limpar os caminhos de nossos pensamentos, como disciplinados serventes – e testemunhar a criação através do fluxo – a viver sob a ilusão de que o intelecto encontra suas próprias maneiras de lapidar soluções.
Quem sabe não seja a clareza o efeito genérico da genialidade?
Para entrar em uma rota de crescimento é preciso estar disposto a desapegar.
Isso significa abrir mão de padrões conhecidos em favor da transformação. Significa desarmar a própria inércia, desconforto e resistência.
Equilibrar-se em movimento.
Definições, quando perdem o vínculo da convicção, abrem espaços sem querer.
Por sua vez, espaços vazios são gentis às mudanças de forma. Assim, um novo olhar. Outro ângulo ou perspectiva. O conhecimento, em sua única essência, é expansivo.
Em algum momento e por (in)consequente razão, nós os direcionamos valores.
Invariavelmente, um novo patamar criará seus próprios mecanismos para se fazer padrão. Nós alimentamos isso. E antes que se diga errado, é meramente natural.
A sombra da recompensa é a segurança. A aventura só é tão atrativa por ser um respiro mais forte que a pausa.
Até para os olhos que não querem ver, a certeza cansa. O novo se permite quando a raiz da mudança emerge na consciência.
Existe tanto ‘onde’ por conhecer, ‘quandos’ por acontecer e ‘comos’ por tentar, que sequer estranho o incessante desejo por viajar.
Cruzar a partir do zero, da vontade à experiência. Tudo que se vive muito além do projetado, do imaginável. O fascínio em descobrir não uma nova esquina, se não a aventura em descobrir-se face à novos contrastes.
Pensamentos se movimentam na direção dos próprios passos. Caminhos não usuais, nem para o corpo, nem para a alma. Talvez por isso as caminhadas sejam tão curiosas quanto revigorantes.
O afastamento do conhecido reacende possibilidades. Quando o olhar mais íntimo desfoca outras visões, faz-se o tempo de reavaliar o fundamento precedente da certeza.
Viajar é descobrir nossos próprios pontos turísticos, ao ponto de visitar e admirar o que de mais único há em nós, livre do descaso que existe no olhar da rotina.
Cada mergulho na introspecção é uma fronteira que se expande. O silêncio de cada cidade. Uma memória em vias de gestação, ora uma nostalgia que se anuncia.
O sentimento – arejado. Muito alívio, poucas palavras.
Todo mundo anda meio perdido. (Nem que seja um pouco). Ou apenas um parênteses.
Um generalismo com licença poética, embora absolutamente realista. Uma afirmação de fácil discordância, não fosse pela sensibilidade dos olhos em traduzir almas.
Talvez pelo excesso de opções. A falta de ordem, o transbordamento de desejos. Regamos ausências com doses de vontades. Expectativas. Um novo, um outro, que não agora. Nada, agora, parece suficientemente pleno. Digno de coexistir à própria respiração.
Perdidos. Pela falta, ou pelo oposto. Temente ao medo que há na lacuna das incertezas. Medo de ter certeza. Escolher, pois, deixar de lado. Um passo que se dá é um infinito que se altera. O universo presente em cada detalhe.
Ninguém sabe, exatamente, onde a estrada leva. Previsões são possibilidades. Estradas são metáforas. Até o futuro, por outro lado, é apenas um fato atrasado. A realidade se constrói na desconstrução do tempo – a isso chamamos momentos.
A vida é um plural de instantes que se encontram. Sentir-se perdido não é o problema, nem um tormento. É uma percepção irrelevante. O que não se pode perder, ao contrário, é a pluralidade que subverte o enquanto.
Desperta um homem pela manhã. Seus lentos olhos abrem, embora já atrasados para a cidade. Levanta-se, o homem, puxado, recorrido pelos anseios venenosos que o tiram o sono.
Ao banho, seu traje, hábitos de homem. Cruza cômodos, incômodo, deixando para trás sua oportunidade de descanso. Na cozinha, o último respiro. Busca ao redor, entre armários, dentro da geladeira – respostas, saídas.
Do que alimentar-se, quando o apetite falha?
Enxerga, o homem, um frasco de mel. Doce, saudável, um suspiro de vida. Em um canto isolado, uma garrafa indecisa. Convidado, caminha até ela, com olhar de agrado.
Segura-a, cai-se em surpresa: pares de formigas boiam, mortas, em plena recompensa ao êxtase – supõe. Mumificam-se, reféns de um sonho glorioso, na atmosfera mais abastada e afortunada de suas perspectivas.
Boiam, mortas.
Pequeno demais o mundo. Os sonhos. Do tamanho de uma garrafa. Doces crenças. O silêncio do universo coube naquela cozinha. O silêncio da percepção de um homem sobre sua natureza.
“Acrescente um pouco de nada à sua vida”, me disse um sábio, que não existe – “pois no vazio despretensioso que se cria no enquanto, quem sabe um vento não enxuga seus olhos.
Pensamentos também nascem quando a rotina se esquece.”