Novamente, refugiei-me nos lençóis da distância. Longe da minha realidade mais familiar, insisto em viver sob o céu que não conheço, a fim de esperar por lampejos de reflexão, que em casa já não sei mais ouvir.
Só de não andar preocupado, a objetividade que falta em meu caminhar sobra no discernimento de meus pensamentos. Quando não há pressa nem atraso, qualquer sensação tem o direito de tomar seu tempo.
Livre, acompanha-me pelas ruas o meu diálogo particular. Penso, vejo, penso. Argumentos vão e vem. Como pessoas, que levam adiante de mim algo que deixo com elas, para trás.
Um olhar, uma palavra, uma ilusão não terminada. Conversas desconhecidas sem nenhuma pretensão, a não ser as demandas do momento. Assim, o tempo só passa quando eu o faço passar.
Encontro em cada esquina um motivo para dobrar a rua: nenhum. Viajar é viver um mosaico, onde cada momento que se constrói é o pedaço de um significado, cuja grandeza não se faz entender no instante em que se vive.
– Como escolher por retratar a felicidade, no exato segundo de cada momento? –perguntou.
Coube ao olhar de Osvaldo, professor de nada, embora reconhecido mestre de assuntos serenos, resguardar-se no silêncio, para só então responder:
– Dê vida à morte.
Aprendizados, quando engravidados por metáforas, possuem uma gestação preciosa.
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Em outro momento da vida de Sandra, uma chuva levou todas as opções da tarde e fez da janela um observatório da vida. O vento que falava de tédio era frio feito vidro suado.
Uma fileira de formigas cruzava os respingos do mármore e desconfiança terceiras. Eis que a moça aproximou seu olhar ao ponto de desfocar os detalhes.
Um grande suspiro trouxe do menor dos mundos: a afirmação da existência é a própria negação da morte.
Istambul estava mais fria que as previsões da minha imaginação. Até então, era o lugar mais longe que estava de casa.
Era confortado por uma coragem que só os jovens têm. Ao menos, era isso que me parecia ao olhar por entre o reflexo de suas imparciais janelas. Uma vontade inexplicável de querer conhecer e sentir-se destemido. Nenhuma barreira freia, embora assuste, o desejo de seguir.
Caminhei pelas ruas relaxadamente atento. Buscava, ao máximo, retirar julgamentos do meu olhar. Só queria conhecer. Ver, estar.
Passo a passo, aproximei-me de costumes distantes. Mesmo que voltasse, já não voltaria igual. A culinária, as histórias, o cheiro daquela cidade. Sentia uma espécie de curiosidade, tacanha em seus quereres, receosa em seu pisar.
Istambul não me parece Europa. Também não Ásia. Pelo menos não como eu achava que era. Istambul está mais para Istambul mesmo. Seu próprio mundo, universo e alquimias.
Nenhuma foto poderia dizer o que é aquela cidade. Ela soa incompleta sem seus sons. Ruídos do nada, barulho de tudo. Inaudível à própria coerência do silêncio. Os carros de todas as direções, as pessoas e suas rezas, o caminhar das multidões, as ruas e seus animais.
Uma cidade tecida e amarrada por movimentos. Mesmo quando há uma pausa no olhar, no instante poético de cada segundo, vultos trêmulos convidam a curiosidade da alma à crer que a vida é apenas o que se move.
Para quem viaja, é muito comum deparar-se com a questão “como é o povo tal?” ou “como as pessoas agem em determinado país?”.
Infelizmente, é normal ouvir respostas sobre essas perguntas. Há quem use a experiência de ter estado em um lugar para singularizar comportamentos e atitudes.
Reduzir um país, uma cultura e suas pessoas a uma experiência é tão grave equívoco quanto acreditar que o hino representa a totalidade de suas histórias. A generalização possui o mesmo gene do preconceito. Falsas verdades são criadas pela irresponsabilidade de visões reduzidas a categorizações.
Viver uma viagem é exatamente o oposto. É possível livrar-se da cadeia invisível de comportamento coletivo e observar, plenamente, as individualidades em ação – ou reação. A observação, por si, desobstrui as portas que o julgamento teima em fechar.
Sair da rotina, esquecer horários, padrões e etiquetas. Viajar permite negar o óbvio e navegar por entre e além dos estereótipos mais rasos.
Ao compartilhar uma experiência cultural, deveria se prestar o máximo cuidado para não tornar o fato uma verdade, nem doar às opiniões os trajes do indiscutível.
O discurso preguiçoso busca auxílio em jargões. No entanto, é preciso estar ciente que qualquer tradição é egoísta: sua existência depende da insistência em contar as mesmas histórias.
Por mais que a convivência seja, em inúmeras vezes, através de interações com instituições, a essência de qualquer relação está no contato humano.
Países são pessoas. Estados são pessoas. Culturas são pessoas. São elas que importam. Isto é, apesar dos hábitos praticados por grupos, na raiz mais íntima de cada um há a potência inata de fazer existir sua individualidade.
Mesmo com toda semelhança, nenhum entendimento tem poder de verdade.
A primeira vez que saí para viajar, sequer imaginei o passo que estava dando. Para mim, parecia um processo ditado por previsões. A mala era pensada a partir das roupas já decididas para cada dia e ocasião. Os dias eram resumidos a roteiros, com rigidez de horário e passeios programados. Sem esquecer do aval, até mesmo, da previsão do tempo.
Se alguém me falasse da magia, não chegaria nem perto de acreditar. Sensações não gostam mesmo de palavras. Sequer desconfiava que a distância era o impulso da liberdade.
Descobri os prazeres de viajar, apenas, quando refletidos em mim. Um latente enriquecimento baseado num encontro de vidas – especialmente daquelas que, se não fosse a viagem, nunca se cruzariam.
Com o tempo, ele mesmo me convenceu a trocar a mala por um mochilão. Aonde ir se tornou mais importante que saber onde ficar. O destino cedeu espaço para o trajeto. O caminho reinventou a linguagem dos significados, além da condição de existência entre dois pontos.
Passei a prestar mais atenção nas pessoas que nas estátuas. Foi quando aprendi a me envolver, de fato, com a importância de uma história. Meus critérios de avaliação passaram a considerar mais os sorrisos que as estrelas de fachada.
Assim, entre famílias e hotéis, preferi tornar-me hóspede por convite.
Viajar sozinho, definitivamente, foi a melhor maneira de descobrir que o melhor parceiro de viagem encontra-se dentro de si. Além da própria evolução, há momentos de pausa e silêncio, herdeiros da verdadeira liberdade.
Quando só, o horário e o destino deixam de pertencer ao consenso. O compromisso segue marcado com o acaso. Segundo o manual dos viajantes, a correnteza prevalece quando não há bordas nem mãos para segurar. Isso, também, me contou uma nuvem.
Uma mochila nas costas, somado a um lugar desconhecido, parece aguçar a sensibilidade. É como se houvesse mais poesia no olhar. O viajante resgata a beleza que a rotina enxuga. Como a chuva que, mediante seu aroma, embeleza o tempo livre das tardes.
Viajar é perceber a sutileza do que tem tudo para passar despercebido.
Quando não há ninguém para conversar, aliás, aprende-se a falar com o silêncio. Na prosa dos pensamentos ou na inspiração das reflexões, torna-se possível descobrir o caminho da própria paz.
Viajar é um constante movimento – por essência, bastante controverso – que se equilibra no colo da pausa. Pequenas ou grandes, a realidade se faz presente. Pelo concreto ou nos seios do abstrato, o dueto do agora. Entre todos os caminhos e as escolhas feitas, experiências e aprendizados são tão subjetivos como idas e vindas. No meio tempo de qualquer momento, com a permissão do fuso, viajar é a chance de nascer de novo.
De um caderno um tanto manso, inéditos escritos de um velho não tão longe assim, uma lição atemporal que nem mesmos todos séculos poderiam explicar:
“Um vento cai melhor que uma palavra. Não me venha com essa de solidão. Vivo um momento de preguiça social. Uma espécie de necessidade involuntária de passar mais tempo comigo.
A troco de nada.
Na verdade, não tem origem em nenhum motivo que possa ser consertado por alguém. Nem ninguém. Não há qualquer ligação com mágoas ou relações arranhadas. A razão é positiva, viva, positivista!
Cercar-me de desconhecidos me impossibilita de me conhecer melhor. Conhecidos também não têm ajudado. Fazem-me perguntas que nem mesmo eu sei dizer. Aliás, são como aromas que sigo dentro de mim.
Como o calor da pele caçada, não há deserto que perdoe quem fique parado. A maior penitência da imobilidade é desinteressar os olhos. Partir para a mudança é romper com a realidade presente.
Ausentar-se, portanto.
Minha falta de instrução religiosa, por outro lado, me deixa em dúvida se preguiça social é igualmente um pecado. Ou se pecado mesmo é fazer da vida um ato sem graça. No entanto, ensina melhor meu espírito quando pede silêncio e deixa a própria verdade falar.
A distância rega a vida das relações. Traz à superfície o crescimento, permite ao tempo assinar sua obra. A preguiça, mesmo, não é de viver. É apenas da vontade de estar. Há no isolamento uma vívida intensidade, uma energia permissivamente egoísta, que só entendem os vulcões.”
Um outono me disse que outros virão. Quanto ao tempo, tranquilizei-me.
Foi tamanha certeza que me deu segurança para seguir incerto. Perto do longe, por um pouco mais de tempo.
Caminhei por vilas, com becos guardados de silêncio e sombra. Nada que desse mais medo que estar forrado em lãs, guardado do céu. Justamente quando não tive endereço, senti a presença de casa.
Sem nuvens, por terra, pisei sensível para me guiar sem chão. Entre pegadas e memórias, optei pelo qual podia levar comigo.
Vi o verão tirar férias em outro lugar. Sempre um prazer.
Continuei e não só meu cabelo cresceu. Quanto mais calado, mais meus pensamentos me ensinaram a hora exata de falar. Logo descobri que eram raras.
Por falar em memórias, se bem me lembro, reparei mais folhas que pedras no caminho.
Levei meses para entender que a primavera estava em meus olhos.
Para quem não hesita em buscar, encontra-se cada vez mais acessível histórias de pessoas que passaram a escolher viajar por uma questão maior que o próprio destino da viagem.
Não é difícil achar, muito menos entender, casos de quem largou tudo para simplesmente sair em busca de algo maior. Reconstroem suas vidas, passam meses na estrada ou somente vão.
Aquele que nunca vai provavelmente acredita que viajar desta forma é uma ideia arriscada. Pode achar que é uma perda de tempo, ancorada por uma má decisão, do qual não há nenhum retorno tangível, além de fotos e presentes.
Nós, entretanto, vemos outro risco – deixar a rotina camuflar o dinamismo natural da vida.
Viajar é um investimento orgânico. Um processo de mudança de consciência. Por definição, envolve muito mais que o aspecto presencial. Quando se sai de onde está, saem também medos, pensamentos e limites.
Abre-se espaço, então, para o enriquecimento cultural. Um arsenal de experiências que servem de subsídio para novas formas de pensar e agir. Princípio de mudanças tanto na esfera pessoal quanto nos campos profissionais.
Geralmente, quem passa a viver desta maneira, costuma concordar que o fato, quando acontece na rua, tem mais verdade que no noticiário. A imperfeição da visão dos olhos, às vezes, tem mais valor que a lente de uma câmera. Ou que, nem de longe, o silêncio das paisagens está retratado nos quadros.
É um câmbio de valores. Uma nova possibilidade de enxergar o que está ao redor. Seja por novos filtros ou além das camadas.
Todavia, há quem siga com medo de encarar mudanças. Sem sequer desconfiar que o medo de perder o que se tem é o que priva de ter mais. A falsa segurança da estabilidade cria uma realidade frágil e camuflada. Tudo que está no contorno, está prestes a transformar.
Nada se isola da mudança.
Há um grande risco ao apostar em raízes, num mundo que os ventos têm forças suficientes para mudar direções.
Não sei exatamente se há um momento chave. Muito menos sei descrever a gota fotografada no flagrante do transbordo. Seu tamanho, densidade ou relevância. A única condição que exige o desencadeamento de uma mudança é o fim da validade de um ato.
Tudo que começa no silêncio encontra uma maneira de conseguir sair.
Cedo ou tarde, eis a hora que não dá mais: a rescisão deixa de ser uma ideia. É necessária uma ruptura. A começar pelo basta de tudo aquilo que não se suporta mais.
Na esquina do limite não há espaço para fazer retorno. Tem-se apenas o que se permite. Leva-se somente o que cabe. Andar para frente sem olhar para trás.
Decisões adiadas, já cansadas de esperar. O tormento de sonhos exilados. O futuro também sabe enviar fantasmas. Tantas linhas – em vão tecidas – viraram nós. Ou contra nós.
“Chega!”.
Quando ergue-se o muro do basta, destacam-se, à vista, apenas tudo que tem espaço para crescer. Inegavelmente claro não por ter mais altura, mas pela vitalidade de suas raízes.
A voz do “chega” tem um tom de cansaço. Um pouco mais reticente, pode-se dizer. Aprendeu, controversamente, a importância em valorizar as escolhas francas. Nas apostas da vida com o tempo, raramente duram os blefes.
Nega-se com mais certeza. Escolhe-se, consentido de convicção. Maturidade talvez seja enfrentar o próprio caminho e ir de encontro ao tropeço de suas próprias pedras.
O abraço paterno às consequências. Aceitar – com a consciência de quem pôde decidir.