Há um mês comecei algo. Dei voz, confiei. Fui em frente.
Acreditei, e fiz.
E, em um mês, muito pode acontecer. E acontece. Uma vida muda, muitas acabam e outras nascem. Renascem. Ciclos se iniciam, dão vez a outros e novos caminhos se apresentam para velhos olhares.
Lá se foram mais quatro semanas. O tempo realmente voa. Se tanta coisa aconteceu na minha vida, imagina no mundo. Quantas coisas não foram perdidas e conquistadas? Quanto valor não foi descoberto e quanta vida não foi mudada?
Por quantas pessoas eu não cruzei na rua? Tudo que passei, poderia agora ser diferente.
Há trinta dias eu era outra pessoa. Em algum outro tempo, em outro lugar, convivendo com alguns sentimentos e sendo bombardeado por outros pensamentos. Alguns seguem, outros já perderam sentido. Piadas e tragédias flutuam na bipolaridade do mar dos pontos de vistas.
Em um mês fiz tantas coisas. Boas, ruins; sinceras, forçadas. Entre o orgulho e o arrependimento está o selo do fato – passou. A vida mudou. Não presenciei grandes eventos nem grandes milagres. Foi só o tempo que passou. E com ele, a faxina que expurga tudo aquilo que não tem raiz para ficar.
Quantas verdades agora já me contradizem; quantos dias não foram marcantes. Um mês é muito tempo, e um dia também. Uma hora é, sim, muito tempo. A mudança não precisa de muito, ela só precisa ser.
Um momento, agora.
Há um mês, criei este presente. Tão definitivo quanto instável. Que já vai passar.
O que eu quero não está na televisão e não há publicidade que possa me entreter – sequer a dou ouvidos.
O que eu quero só se pode sentir em movimento.
Nas idas sem voltas de novos caminhos, no ineditismo de boas caminhadas ou nas janelas que me oferecem vistas cintilantes.
O que quero só se pode sentir no silêncio incomunicável de um pôr do Sol que – posso jurar – não há câmera que o reproduza.
O que eu quero é presenciar a liberdade de me sentir tão solto e perdido, em meio a pessoas que não conheço, paisagens que não estou acostumado e climas que me são estranhos.
O que eu quero é sentir novamente a carência de rigores, que me desconecta de preconceitos e padrões, que me permite ser a versão mais sincera de mim.
O que eu quero é deixar meu olhar curioso.
Sorrir com espontaneidade, sentir minha sobrancelha arquear-se e desembrulhar cada minuto do meu dia como se fossem cartas embaralhadas pelo destino.
O que eu quero só se pode sentir na condição de carona – é quando o que estava rápido desacelera, uma porta se abre e o resto não mais importa.
Compartilhar momentos memoráveis com pessoas de outros países, continentes e realidades. Quando não descobrimos novas aventuras, descobrimos a nós mesmos. Ser diplomata da vida.
O que eu quero só se pode sentir depois de conversar horas com estranhos, beber novas culturas e brindar com novas palavras. Grandes amizades nascem assim. E amores também.
O que eu quero é aprender novas línguas – não para falar, mas para ouvir mais. Mergulhar em novos conhecimentos, sobrevoar novas religiões e pescar novos sentidos que me façam dar, à vida, uma chuva de significados.
O que eu quero…
O que eu quero só se pode sentir depois de percorrer estradas sem nenhum turista, subir montanhas com lendas locais e descobrir que tudo, na verdade, é especialmente único e perfeito. É descobrir que onde poucos chegam, muitos se encontram.
O que eu quero só se pode sentir depois de dormir em diferentes lugares e acordar olhando para tantos outros tetos. Ou às vezes estrelas – desprender-me: a liberdade de não pertencer a nada me permite, potencialmente, pertencer a tudo.
O que eu quero é silêncio.
Um momento presente de paz; e me conhecer. Gritar para o mundo que sou seu filho e escutar meu chamado ecoar, sem barreiras, até perder-se.
O que eu quero é ir mais longe, sentir o vento redesenhar meu rosto e ser contemplado com uma paisagem que me faça tirar os meus óculos escuros.
O que eu quero só se pode sentir quando o coração é a bússola. Das bandeiras que capitaneia minha alma; do sangue de explorador que desvirgina minhas veias – a livre e amaldiçoada necessidade de lograr novos horizontes.
O que eu quero viola preconceitos, visões pequenas e raízes profundas. À qualquer julgamento prevaleço calado. E sigo.
O que eu quero é viajar; mas viajar de verdade, com verdade e por novas verdades. Despir-me de fronteiras e rotas – ser um sopro de vento entre árvores. Tão livre e tão cativante.
O que eu quero, mesmo, é olhar para frente e saber que amanhã estarei lá.
Certa noite fui convidado a uma luta que eu não queria lutar. Não que eu seja um covarde, mas pense comigo.
A luz estava apagada e a temperatura perfeita. Para completar o enredo, dois travesseiros, uma almofada e um edredom. Eu já estava prestes a dormir!
A primeira vez que o escutei, pressenti uma ameaça. Ainda com os olhos fechados, me fingi de morto e torci para que aquele pesadelo não se iniciasse. Contei segundo após segundo com a esperança de que ele não me visse. E, de repente, um silêncio absoluto.
O primeiro rasante pareceu ser só um alerta. Pela potência sonora, o mosquito era um dos grandes e estava faminto. O segundo ataque era questão de tempo.
Ele veio.
Pude escutar sua vinda. Imediatamente, uma cena veio à cabeça: eu via seu sorriso sádico, sedento por sangue, marchando em minha direção ao som de “Cavalgada das Valquirias” – um massacre estava por começar.
Primeiro tentei uma armadilha. Ofereci meu ouvido como isca; os olhos estavam abertos como um sentinela e as mãos prontas para golpeá-lo. Senti sua presença próxima ao meu rosto e acertei um impiedoso tapa em minha própria cara – não há vitória sem sacrifício.
Minha alegria durou menos de cinco minutos e logo ouvi o amedrontador som de seu voo novamente. Naquele momento eu tinha um rosto vermelho, um medo crescente e uma ilusão de vitória.
Para ganhar tempo, escondi minha cabeça embaixo do travesseiro, reforcei com o edredom e junto à parede da cama improvisei um bunker.
Passaram-se dois minutos e eu já estava pedindo arrego. Dificuldade em respirar, calor e desconforto. Retirei a proteção e depositei toda minha fé em um código biológico de ética universal – “se um não quer, dois não brigam.”.
Ele me deu cinco minutos de trégua e voltou como um fantasma.
De Sun Tzu à Darwin, procurei explicações para a superioridade do meu adversário no confronto. Considerei um acordo – deixaria meu braço de fora e tentaria dormir: os dois sairiam satisfeitos.
Pois, resolvi enfrentá-lo.
Levantei-me, acendi a luz e incorporei um caçador. Esqueci meus problemas, a hora, o sono e minha compaixão. Era um vingador inapelável. Logo resgatei um spray e recorri, inclusive, às armas químicas.
Em um ataque resolvi o problema.
E não me arrependo.
Mas com aquela noite aprendi – se um dia sentir-se pequeno para realizar algum feito, lembre-se do dano que um mosquito pode causar em sua noite de sono.
Se as roupas já não me vestem mais, os velhos brinquedos tampouco me servem. Daquelas figurinhas que eu colecionava e dos tantos álbuns que eu quase completei, nenhum deles tem mais espaço em minhas atuais coleções. Daquele tempo, trago comigo uma porção de risadas e cicatrizes de uns velhos machucados.
Lembro-me, também, de amigos que não vejo desde aquela época, cada rosto inocentemente travesso. Chego a rir sozinho das tantas descobertas e aventuras que nos metíamos. Por onde será que eles andam agora…
Da minha adolescência, creio, também não levo nada físico.
Sumi com aqueles CDs e nunca mais vi o pôster daquela banda que nem é mais a minha favorita. Até minha memória deixou de lado trechos seletos de velhas canções. Perdi o quadro que fiz com o ingresso, mas carrego comigo aquele show – como poderia esquecê-lo – talvez tenha sido a primeira vez em minha vida que me senti independente.
Já não sei mais onde está o cordão que ganhei da minha primeira namorada. Daquele dia, lembro-me apenas da marca que fizemos na árvore com as iniciais dos nossos nomes. Aliás, lembro-me de tantos momentos que jurávamos ser eternos. De todos os presentes que trocamos, hoje levo comigo apenas boas histórias e experiências.
Da adolescência carrego com carinho as minhas primeiras viagens, as primeiras bebedeiras, os momentos compartilhados com aqueles amigos que, quem diria, são meus amigos até hoje.
Na verdade, vou me contrariar. Tenho lembranças físicas sim. Às vezes, inclusive, recorro às fotos que ficam lá em cima do armário. Perco horas naquela gaveta empoeirada, e encontro em cada recordação um atalho para reaquecer minha vida. Não chego a voltar no tempo, mas nem precisaria. Dou àquela velha experiência mais um dia de vida, faço a prolongar-se.
E talvez isso queira dizer algo: de repente, entre o preço e a finitude do que é material, ou entre as inúmeras ilusões que nos entretêm, o que verdadeiramente importa desta vida está no valor e na eternidade das boas experiências.
Hoje, cada vez mais, busco entender e quantificar o valor de cada momento, de cada sorriso e de cada escolha. Se prestigio boas experiências, automaticamente fabrico boas memórias. E é isso que espero levar; este é o verdadeiro fardo de nossa riqueza; pois, do que levo do meu passado, nada físico levamos desta vida.
Não foi nem um pássaro nem com cantos de galo que acordei. O despertador vociferava aos meus ouvidos para que eu já despertasse em um estado de agressividade e pressa.
Levanto e junto comigo o meu cansaço. “Nem dormi e já está na hora”, pensei. Pensei não, resmunguei. Aos meus olhos, meu quarto oferece um irresistível aconchego cinco estrelas. Se ontem rolei horas antes de dormir, neste momento minha cama me chama mais que o canto de uma sereia.
Venço a tentação e me dirijo ao banheiro. No banho, incorporo o arquiteto da rotina – decido que roupa eu vou vestir, o que vou comer no café da manhã, qual minuto exato preciso sair de casa e, quando sobra tempo, faço uma conta rápida para calcular em quantas horas estarei de volta ao meu querido lar – geralmente é desanimador.
Enquanto me enxugo, repasso o plano na cabeça. Visualizo em que gaveta está aquela meia e faço um raio-x mental se tenho tudo o que preciso na mochila. Ela provavelmente está na mesma posição que a joguei ontem à noite.
Macaco velho que sou, coloco o sanduíche para tostar e ligo a cafeteira enquanto, em paralelo, ganho tempo para terminar de me arrumar – minha manhã já começa com conceito de produtividade máxima.
Que minha nutricionista não leia isto, mas tomo minha primeira refeição em pé. De um lado para o outro, me preocupo para que o farelo do pão não caia pela casa enquanto executo tarefas pontuais. Do contrário, não consigo sair no horário arquitetado no banho.
Olho para o relógio e cinco segundos depois preciso olhar de novo. “Que horas são mesmo?”, me pergunto. São tantas coisas na cabeça que não consigo assimilar o horário de primeira, necessito revê-lo umas duas ou três vezes até entender que estou atrasado.
Checo se a casa está toda trancada, escovo os dentes em velocidade recorde e dou o último trato no visual. Penso na minha cama novamente, mas sigo em frente e supero.
No caminho para o trabalho o trânsito me entorpece. Dá até preguiça de se estressar. Estou tão cansado que se cochilo por alguns minutos parece que entrei em coma.
Pela quarta vez consecutiva dou uma geral no meu celular para procurar alguma novidade que me entretenha. Já esgotei todas. Das centenas de músicas que possuo no meu acervo pessoal, nenhuma parece servir.
Escutar o rádio, pior ainda. Entre notícias ruins e horríveis sobre crimes e assassinatos, sou informado daquela mesma batida naquele mesmo ponto que ontem também estava trânsito. Conheço o discurso tão bem que poderia até substituir o tal repórter aéreo.
Chego perto do meu trabalho e, naquela última caminhada antes de entrar no escritório, deixo de lado meu aspecto zumbi e finjo que sou a pessoa mais disposta daquela manhã. Desejo um “bom dia!” com a falsidade de um comercial de margarina.
Já no trabalho, o piloto é automático – me atualizo sobre o noticiário do dia, trabalho um pouco; comentam comigo sobre algum acontecimento inútil da vida de alguém e trabalho mais um pouco. No horário do almoço, alguém me confessa como está ansioso pelas férias e que não aguenta mais aquela rotina. Volto para o trabalho e planejo tomar um café ou ir ao banheiro com a esperança de ‘gastar’ preciosos minutos. Trabalho mais um pouco e logo começo a me concentrar em três tarefas – terminar o mais rápido possível o que estou fazendo, rezar para nada novo aparecer e inicio a contagem regressiva para ir embora.
Saio do escritório e já está escuro. Praticamente nem vi o Sol hoje. Mentira, alguém postou uma foto de pôr do sol e eu vi pela internet. Será que isso conta?
O trânsito da volta não merece nem comentários. A sensação de voltar para a casa talvez seja a mesma daqueles filmes de guerra, no qual o soldado retorna à sua amada depois de caminhar por planícies e desertos.
Abro a porta, acendo a luz e tranco a fechadura. Ainda no automático, só dou conta de que estou em casa quando escuto o barulho que as chaves produzem ao encontrar o balcão da cozinha ou a mesa da sala. Este sim é o sinal que me diz que estou finalmente de volta.
Jogo minha bolsa em qualquer canto e me dirijo para a ducha como se fosse um banho turco. Lá, entro em alfa.
Mais tarde, na cama, não consigo dormir. Meu corpo sequer reage, no entanto minha mente funciona a todo vapor. Penso em tanta coisa que nem sei o que penso. Não sei se assisto a TV, mexo no meu celular, leio um livro ou tento fazer tudo ao mesmo tempo. Rolo na cama e quando quase pego no sono me lembro de uma tarefa – “Ah, o despertador.”.
As horas avançam e começo a me preocupar com o dia seguinte. Aumento sobre mim a pressão para dormir e, claro, não durmo. Pouco a pouco, dou voz ao filósofo que me torno quando o teto do meu quarto se torna meu horizonte.
Repenso minha vida e revivo alguns sonhos. Por alguns momentos imagino cenas que me dão uma sensação tão boa. Viajo em outros paralelos e encontro o conforto que me carece. “E se…”.
Reflito, respiro e bocejo. Não concluo nenhum dos três e antes que repare, dormi.
Aquela sequência de acontecimentos nada cinzas e cheios de vida. Um momento que minha única atividade era ser feliz. Que meus problemas eram logo superados e que eu era bobo suficiente para não dá-los tanta atenção.
Nesse dia, me lembro, fui perguntado sobre o que eu queria ser quando crescer. Não soube responder, pois viver já me bastava. Como eu seria capaz de responder isso se era tão mais importante decidir se eu iria jogar vídeo game ou assistir o desenho animado que acabara de começar?
Um doce sonho de menino.
Intrigava-me como contas que chegavam pelo correio causavam mal-estar na “gente grande”. Um quarto escuro me parecia tão mais amedrontador que este pequeno pedaço de papel.
Quando meu maior medo era do escuro, me confortava saber que meu maior desafio fora conseguir andar. Eu, que já havia ficado de pé sozinho, agora criava a minha própria distância do horizonte. Mas o escuro ainda dava medo mesmo assim.
Naquele dia, meu amanhã só aparecia mesmo depois do hoje. Era sincero comigo e com todos ao meu redor. Lembro-me como eu era estranho à algumas coisas novas que a “gente grande” fazia.
Mas logo deixava de pensar e ia me divertir.
Hoje, confuso, não sei dizer se sonhei com a vida que tinha ou apenas lembrei do sonho que eu um dia vivi.
Só sei que, com o passar do tempo, aquela vida do menino mais me parecia um sonho mesmo. Tão simples e tão distante. Com uma ingênua sabedoria, a felicidade era o caminho e a razão primária de tudo.
Das camuflagens que hoje visto, dos problemas que hoje enxergo e do amanha que hoje vivo, fiz daquela vida apenas um sonho e vi o menino tornar-se o homem que não entendia.
Hoje não tenho mais medo do escuro. Pior, tenho medo do que é cinza.
Quem diria que, no final das contas, entre aquele menino e eu, ele vivia enquanto eu sonhava.
“Verdade mesmo é que os 20 e poucos são anos pra lá de confusos. É um período meio azedo. É tipo Agosto: que não faz calor, que não chove, que não faz frio – faz tudo isso ao mesmo tempo. Para quem não anda muito seguro, bate até um friozinho na barriga. Mas daqueles de gente grande.
A paranoia começa quando você sabe que Fulano está prestes a casar. Marcou data e tudo. Já deixa de ir à praia para visitar buffets e salões de festa. O telefone só atende na segunda chamada. O cara nem ri mais de piadas idiotas!
E Sicrano, pior, vai ser pai. Já era. Engraçado como seu jeitão mudou, amadureceu na hora. Sua barba passou a fazer mais sentido e os planos mudaram de Vegas para Disney. Você fala “frango” e ele entende “fralda”. Menos um no futebol.
E aquele outro surtou. Na verdade, sempre foi meio pancada desde o colégio. Mas agora foi de vez. Mudou de penteado, país, religião – só falta mudar de cor. Bom, dele não duvido mais nada.
Aquela minha vizinha é outra. Fez duas tatuagens e começou a malhar. Deixou a timidez de lado e agora virou um mulherão. Quando mais nova usava um aparelho e ninguém lhe dava bola. Quero ver agora a cara dos marmanjos.
E Beltrano? Esse sim se deu bem. Virou artista conhecido e tá desfilando sucesso. O cara é bom mesmo, vai longe. Deixou crescer o cabelo e agora virou ícone social – vê se pode!
Mas outro dia mesmo me peguei foi pensando na irmã dele. Nossa! Aquela ali eu peguei no colo. Depois perdemos o contato e olha como ela está agora! Um espetáculo, que isso! Agora que o pai dela deve estar mais mal-encarado ainda.
Nossa, e o perninha lá do futebol? Joga muita bola, mas quer saber de nada. Aquele ali tá mais perdido do que nunca. Não estuda, não trabalha. Pior que o sacana tem um bom papo.
Soube ontem que aquele outro que não lembro nome tá arrebentando lá na firma. O cara já é gerente e tudo. Começou pequeno e foi crescendo. Comprou isso, comprou aquilo, não para de viajar. Tá com a vida encaminhada. Em cinco anos vai estar com cabelos brancos!
Descobri outro dia que minha ex casou. Não levei fé que o lance com aquele cara fosse durar. Sempre dava mole pra ela, mas casar é demais! Bom, deixa pra lá. Já passou mesmo.
Ainda bem que tenho minha namorada! A gente briga, mas gosto dela. Por enquanto não disse nada sobre casar! É, mas outro dia lembrei que ela falou em ter filhos. Ih, rapaz, seria isso um sinal? Ferrou. Mas se bem que ela anda meio confusa, estressada. De repente não é nada demais. Não, com ela sempre tem alguma coisa. É, ferrou mesmo.
Sair de casa deixou de ser uma obrigação. É um decreto! Do final do ano não passa, pode me cobrar. Eu sei que falei isso ano passado, mas agora é sério. Ano retrasado não conta, falei por falar.
E não é que lá em casa meus pais tão envelhecendo de verdade?! A terceira idade começa a trazer o charme que faltava para eles. Sorrisos cada vez mais inocentes e carregados de experiência. Tá bonito de se ver!
Mas da minha vida mesmo não sei dizer. Já não sou tão mais novo para errar alguns caminhos e também não sou tão velho ao ponto de fechar algumas portas. Sou o limite entre a minha realidade e meus sonhos.
Ciclos vão se fechando, responsabilidades se apresentam e algumas pressões começam a mostrar suas faces. Exames de rotina, calendário – acho até que vou comprar uma agenda, minha memória já não anda lá essas coisas.
Confesso que às vezes parece que volto a ser criança e sinto um medo de seguir em frente. A vontade é de esconder-me no edredom, mas a vida já me ensinou que isso não adianta tanto assim.
Pra você ver, outro dia me assustei durante um gole de cerveja. Foi com naturalidade que comecei a contar minhas histórias de moleque de cinco anos trás. Quando fiz as contas – engasguei – me dei conta que já tinha deixado de ser moleque há mais de dez. Mais do que nunca, as escolhas de cinco anos atrás regem cada vez mais minha vida.
E os raros encontros do nosso grupo de amigos? Reunir todo mundo é uma Odisséia. Sem agregados, impossível. Já nem sempre criamos novas histórias, mas passamos um bom tempo relembrando algumas de oito anos atrás.
Pensando bem, engraçado como cada um tomou seu caminho. Bom, na verdade alguns eram óbvios. Talvez por isso não confiar no meu me causa um tremendo desconforto. Mas tenho fé, vou encontrar o que eu quero para minha vida inteira. Aliás, estou trabalhando a espiritualidade agora. Cada vez mais isso me parece uma boa escolha!
Opa! Acabei de ser chamado para outra formatura. Meus primos vão se formar hoje e me deram o convite. Bom, melhor parar de filosofar um pouco e me preparar para a festa. Afinal, de toda esta confusão, posso garantir uma coisa – estes tais 20 e poucos anos não vão durar para sempre.”
Entre a perfeição e pontualidade da rotina alemã, navego. Serpenteando entre suas exatidões, represento uma união de incertezas alheio a qualquer garra que a rotina possa me apresentar.
Do sono que não me encontra ou dos costumes que não pratico, sou aquele estranho estrangeiro – ao mesmo tempo pra mim e para o resto.
Sou um olhar cego ao espelho. Despreparado, só vejo traços enquanto não entendo meus próprios reflexos.
Viajo, neste momento, no limite entre as nuvens e a luz – um infinito céu onde em ambos não há visibilidade.
Quanto mais me distancio de casa com mais intimidade minha natureza me fita. Um olhar poderoso e imponente. Tão belo e tão místico – amedrontador.
Ironicamente, em minha cruzada não encontro tesouros – nem em forma de perguntas, muito menos respostas.
Continuo minha jornada com a crença de uma revelação. Talvez daquelas das quais o maior vilão seja a maior verdade.
Uma perigosa inclinação espiritual. Talvez tenhamos crescido com ideias erradas sobre nossos próprios destinos.
Talvez tenhamos nos iludido com algumas aspirações.
Pode ser que, no que temos de mais profundo e ao mesmo tempo simples, tenhamos um latente desejo que nos move.
Talvez, no meio do caminho, canalizamos a força desse desejo em uma pulsante fixação sobre o universo do ‘ter’.
E a partir daí condicionamos toda nossa plenitude ao que é exterior, ao que nos faz, nos causa – ao que temos ou podemos ter.
Me soa sedutor, entretanto, a ideia de reler este desejo. Escutá-lo com mais atenção, fazê-lo expressar-se. Pois me há injetado calma a ideia de este desejo não desejar, essencialmente, ‘ter’.
Foi quando, em um alinhamento inexplicável, descobri que indagações podem ser mais verdadeiras que afirmações – e se o desejo mais profundo que existe em nós desejasse ‘ser’? A motivação em ‘ser’ é incondicional ao ‘ter’.
Isto é, o ‘ser’ é independente ao tempo, ao espaço e ao exterior. É a soberania do momento, é o melhor momento da presença no presente. É a autoafirmação em seu caráter mais pessoal.
Talvez seja o ponto zero, o estado mais elevado de todas nossas complexidades. Da alegria em si, da própria felicidade.
Quando somos, remanejamos os pertencimentos para uma segunda esfera. Não precisamos ‘ter’. Podemos ou não – somos verdadeiramente livres por e à qualquer definição.
Quando somos, escolhemos. Entendemos que somos a soma das consequências de nossas decisões. Entendemos que tudo o que temos é complementar às nossas escolhas e há variabilidade em tudo que está ao nosso alcance.
Quando queremos ser, temos uma motivação sublime e virtuosa para tudo que nos envolvemos. Temos a liberdade como horizonte e a responsabilidade como essência.
À esta altura, talvez saber não seja tudo. Quando sabedoria torna-se a maior riqueza, a fortuna volta a estar no entendimento sobre o verdadeiro manifesto do desejo. Do entendimento de si para consigo.
Me chamaram pra rua e eu fui. Manifestei minha curiosidade em simplesmente presenciar um movimento urbano com vida própria.
Mergulhei entre diferentes grupos de pessoas, famílias e desconhecidos, que tinham suas próprias motivações para estar ali.
Testemunhei, impressionado, uma massa reativa, com sentimento coletivo e inexplicável – de patriotismo, indignação e talvez até ressentimentos.
Foi realmente um episódio muito bonito.
Saí de lá, no entanto, com medo. Não das bombas ou do caos. Medo da frustração. De toda a expectativa criada em cima de mudanças, de um certo basta ou de determinado fim.
Medo dos que terceirizam a mudança. Daqueles que estavam ao meu lado apontando o dedo para tudo o que está errado. Destes mesmos que me apontam o mesmo dedo, no dia seguinte, para me xingar no trânsito ou na fila do banco.
Meu medo está no romantismo. Do “gigante que acordou”; da “revolução”; ou das nomeações das primaveras. De uma manifestação narcisista.
Não me entenda errado – minha crítica não está na ida às ruas. Está na volta. Como cada um volta após protestar, gritar e exigir mudanças? Como cada um volta ao seu dia a dia após lutar contra a corrupção?
Uma verdadeira revolução não se concebe nos decibéis de gritos guardados ou nas palavras carregadas de cartazes. Sua vitória está no respeito ao sinal de trânsito, ao pedestre, ao desconhecido na fila da lanchonete, na disciplina diária de boas práticas.