
Entre a perfeição e pontualidade da rotina alemã, navego. Serpenteando entre suas exatidões, represento uma união de incertezas alheio a qualquer garra que a rotina possa me apresentar.
Do sono que não me encontra ou dos costumes que não pratico, sou aquele estranho estrangeiro – ao mesmo tempo pra mim e para o resto.
Sou um olhar cego ao espelho. Despreparado, só vejo traços enquanto não entendo meus próprios reflexos.
Viajo, neste momento, no limite entre as nuvens e a luz – um infinito céu onde em ambos não há visibilidade.
Quanto mais me distancio de casa com mais intimidade minha natureza me fita. Um olhar poderoso e imponente. Tão belo e tão místico – amedrontador.
Ironicamente, em minha cruzada não encontro tesouros – nem em forma de perguntas, muito menos respostas.
Continuo minha jornada com a crença de uma revelação. Talvez daquelas das quais o maior vilão seja a maior verdade.
Uma perigosa inclinação espiritual. Talvez tenhamos crescido com ideias erradas sobre nossos próprios destinos.
Talvez tenhamos nos iludido com algumas aspirações.
Pode ser que, no que temos de mais profundo e ao mesmo tempo simples, tenhamos um latente desejo que nos move.
Talvez, no meio do caminho, canalizamos a força desse desejo em uma pulsante fixação sobre o universo do ‘ter’.
E a partir daí condicionamos toda nossa plenitude ao que é exterior, ao que nos faz, nos causa – ao que temos ou podemos ter.
Me soa sedutor, entretanto, a ideia de reler este desejo. Escutá-lo com mais atenção, fazê-lo expressar-se. Pois me há injetado calma a ideia de este desejo não desejar, essencialmente, ‘ter’.
Foi quando, em um alinhamento inexplicável, descobri que indagações podem ser mais verdadeiras que afirmações – e se o desejo mais profundo que existe em nós desejasse ‘ser’? A motivação em ‘ser’ é incondicional ao ‘ter’.
Isto é, o ‘ser’ é independente ao tempo, ao espaço e ao exterior. É a soberania do momento, é o melhor momento da presença no presente. É a autoafirmação em seu caráter mais pessoal.
Talvez seja o ponto zero, o estado mais elevado de todas nossas complexidades. Da alegria em si, da própria felicidade.
Quando somos, remanejamos os pertencimentos para uma segunda esfera. Não precisamos ‘ter’. Podemos ou não – somos verdadeiramente livres por e à qualquer definição.
Quando somos, escolhemos. Entendemos que somos a soma das consequências de nossas decisões. Entendemos que tudo o que temos é complementar às nossas escolhas e há variabilidade em tudo que está ao nosso alcance.
Quando queremos ser, temos uma motivação sublime e virtuosa para tudo que nos envolvemos. Temos a liberdade como horizonte e a responsabilidade como essência.
À esta altura, talvez saber não seja tudo. Quando sabedoria torna-se a maior riqueza, a fortuna volta a estar no entendimento sobre o verdadeiro manifesto do desejo. Do entendimento de si para consigo.
(Marcelo Penteado)