Todos os dias uma avalanche de informações inunda nossa mente. Um múltiplo acúmulo de estímulos, projeções e lembranças.
Fatos mal tragados, doses sobre doses. O excesso é uma medida que não cabe no tempo.
Em consequência às inúmeras distrações, amplifica-se, também, o desafio em saber ouvir a própria voz. Os pensamentos que gritam sob os escombros.
O reverbero genuíno da matriz que vem de dentro.
Eis uma boa meta – diária – organizar, pois, oxigenar, a mente. Vasculhar, atento, os escombros dentro de si. Resgatar, guiado pelos gritos ecoados de quem depende de ajuda para poder encontrar uma saída.
Resgatar o manifesto que ainda resiste ao despejo.
Somos, talvez, mais destinados a limpar os caminhos de nossos pensamentos, como disciplinados serventes – e testemunhar a criação através do fluxo – a viver sob a ilusão de que o intelecto encontra suas próprias maneiras de lapidar soluções.
Quem sabe não seja a clareza o efeito genérico da genialidade?
Para entrar em uma rota de crescimento é preciso estar disposto a desapegar.
Isso significa abrir mão de padrões conhecidos em favor da transformação. Significa desarmar a própria inércia, desconforto e resistência.
Equilibrar-se em movimento.
Definições, quando perdem o vínculo da convicção, abrem espaços sem querer.
Por sua vez, espaços vazios são gentis às mudanças de forma. Assim, um novo olhar. Outro ângulo ou perspectiva. O conhecimento, em sua única essência, é expansivo.
Em algum momento e por (in)consequente razão, nós os direcionamos valores.
Invariavelmente, um novo patamar criará seus próprios mecanismos para se fazer padrão. Nós alimentamos isso. E antes que se diga errado, é meramente natural.
A sombra da recompensa é a segurança. A aventura só é tão atrativa por ser um respiro mais forte que a pausa.
Até para os olhos que não querem ver, a certeza cansa. O novo se permite quando a raiz da mudança emerge na consciência.
“Acrescente um pouco de nada à sua vida”, me disse um sábio, que não existe – “pois no vazio despretensioso que se cria no enquanto, quem sabe um vento não enxuga seus olhos.
Pensamentos também nascem quando a rotina se esquece.”
Entre a expectativa e a memória, existe um ponto de realidade, com outras cores e outros sons. Novos ares, como uma nova dose, resistentes à renovação.
A mesma rua, por ora, é outra rua. A mesma rua, outro sou eu.
Confundimo-nos.
Ela, vaga ao egoísmo da minha lembrança; eu, pleno em sua realidade mais nua. Incompatível ao meu estar. Ao meu olhar de significação. Sinais escorridos pelo tempo, com o tempo. Para outros tempos…
Revisitar um lugar para reviver uma memória – quem nunca?
A experiência, no entanto, muda a consciência. Isso só se percebe depois. Um movimento de avanço. Percebido pelo retorno.
Retornar. Retomar.
Vive-se um esvaziamento de significado da rotina, do passado e do presente. Uma nova perspectiva precisa de espaço para crescer. De credo para existir.
Preciosa como uma semente, a mente de quem retorna. Pelo o olhar da inconsciência, porém, nenhuma viagem oferece regressos.
Como a vida e tantas outras coisas pequenas, a natureza de seu caminho é a continuidade.
De repente e, dia após dia, ele queria ser grande. A vontade de crescer, o descontentamento com a idade. O tamanho não compartia tamanhos anseios. Os desejos de ser eram maiores do que se era. Um outono por ano ainda parecia insuficiente. Queria mais, e cada vez mais rápido.
Como se o tempo não passasse o suficiente.
Queria pular o que não havia nem visto. Lembrar o que não viu ou até mesmo ser sem sequer ter sido. Queria ter sentido, sem antes sentir. Sem enquanto, nem durante, nem nunca.
Criança deixou de ser quando ainda era. Um dia, grande queria ser em pensamentos. Logo eram desejos transformados em palavras. Cresceu despercebendo a beleza em ser exatamente o que se era.
Ao olhar para o futuro, as vontades e os desejos, não o deixavam sentir os problemas que só o presente é capaz de oferecer. As brincadeiras viviam a realidade pelo ombro da fantasia. Como era bom ser gente grande, quando ainda não se se era.
Cresceu, de fato.
Ora grande, quando só, lembrou de anseios como se pensa em besteiras. Ao olhar para as paredes, fotos soltas em histórias antigas. Parte do que esqueceu-se de esquecer por inteiro.
Eram lembranças querendo atenção. Nada que o tempo não leve. Ele sempre levou.
– Como escolher por retratar a felicidade, no exato segundo de cada momento? –perguntou.
Coube ao olhar de Osvaldo, professor de nada, embora reconhecido mestre de assuntos serenos, resguardar-se no silêncio, para só então responder:
– Dê vida à morte.
Aprendizados, quando engravidados por metáforas, possuem uma gestação preciosa.
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Em outro momento da vida de Sandra, uma chuva levou todas as opções da tarde e fez da janela um observatório da vida. O vento que falava de tédio era frio feito vidro suado.
Uma fileira de formigas cruzava os respingos do mármore e desconfiança terceiras. Eis que a moça aproximou seu olhar ao ponto de desfocar os detalhes.
Um grande suspiro trouxe do menor dos mundos: a afirmação da existência é a própria negação da morte.
A primeira vez que saí para viajar, sequer imaginei o passo que estava dando. Para mim, parecia um processo ditado por previsões. A mala era pensada a partir das roupas já decididas para cada dia e ocasião. Os dias eram resumidos a roteiros, com rigidez de horário e passeios programados. Sem esquecer do aval, até mesmo, da previsão do tempo.
Se alguém me falasse da magia, não chegaria nem perto de acreditar. Sensações não gostam mesmo de palavras. Sequer desconfiava que a distância era o impulso da liberdade.
Descobri os prazeres de viajar, apenas, quando refletidos em mim. Um latente enriquecimento baseado num encontro de vidas – especialmente daquelas que, se não fosse a viagem, nunca se cruzariam.
Com o tempo, ele mesmo me convenceu a trocar a mala por um mochilão. Aonde ir se tornou mais importante que saber onde ficar. O destino cedeu espaço para o trajeto. O caminho reinventou a linguagem dos significados, além da condição de existência entre dois pontos.
Passei a prestar mais atenção nas pessoas que nas estátuas. Foi quando aprendi a me envolver, de fato, com a importância de uma história. Meus critérios de avaliação passaram a considerar mais os sorrisos que as estrelas de fachada.
Assim, entre famílias e hotéis, preferi tornar-me hóspede por convite.
Viajar sozinho, definitivamente, foi a melhor maneira de descobrir que o melhor parceiro de viagem encontra-se dentro de si. Além da própria evolução, há momentos de pausa e silêncio, herdeiros da verdadeira liberdade.
Quando só, o horário e o destino deixam de pertencer ao consenso. O compromisso segue marcado com o acaso. Segundo o manual dos viajantes, a correnteza prevalece quando não há bordas nem mãos para segurar. Isso, também, me contou uma nuvem.
Uma mochila nas costas, somado a um lugar desconhecido, parece aguçar a sensibilidade. É como se houvesse mais poesia no olhar. O viajante resgata a beleza que a rotina enxuga. Como a chuva que, mediante seu aroma, embeleza o tempo livre das tardes.
Viajar é perceber a sutileza do que tem tudo para passar despercebido.
Quando não há ninguém para conversar, aliás, aprende-se a falar com o silêncio. Na prosa dos pensamentos ou na inspiração das reflexões, torna-se possível descobrir o caminho da própria paz.
Viajar é um constante movimento – por essência, bastante controverso – que se equilibra no colo da pausa. Pequenas ou grandes, a realidade se faz presente. Pelo concreto ou nos seios do abstrato, o dueto do agora. Entre todos os caminhos e as escolhas feitas, experiências e aprendizados são tão subjetivos como idas e vindas. No meio tempo de qualquer momento, com a permissão do fuso, viajar é a chance de nascer de novo.
De um caderno um tanto manso, inéditos escritos de um velho não tão longe assim, uma lição atemporal que nem mesmos todos séculos poderiam explicar:
“Um vento cai melhor que uma palavra. Não me venha com essa de solidão. Vivo um momento de preguiça social. Uma espécie de necessidade involuntária de passar mais tempo comigo.
A troco de nada.
Na verdade, não tem origem em nenhum motivo que possa ser consertado por alguém. Nem ninguém. Não há qualquer ligação com mágoas ou relações arranhadas. A razão é positiva, viva, positivista!
Cercar-me de desconhecidos me impossibilita de me conhecer melhor. Conhecidos também não têm ajudado. Fazem-me perguntas que nem mesmo eu sei dizer. Aliás, são como aromas que sigo dentro de mim.
Como o calor da pele caçada, não há deserto que perdoe quem fique parado. A maior penitência da imobilidade é desinteressar os olhos. Partir para a mudança é romper com a realidade presente.
Ausentar-se, portanto.
Minha falta de instrução religiosa, por outro lado, me deixa em dúvida se preguiça social é igualmente um pecado. Ou se pecado mesmo é fazer da vida um ato sem graça. No entanto, ensina melhor meu espírito quando pede silêncio e deixa a própria verdade falar.
A distância rega a vida das relações. Traz à superfície o crescimento, permite ao tempo assinar sua obra. A preguiça, mesmo, não é de viver. É apenas da vontade de estar. Há no isolamento uma vívida intensidade, uma energia permissivamente egoísta, que só entendem os vulcões.”