De repente, a mais concreta das realidades parece carecer de seu sentido. O dominó da insegurança deflagra seu efeito inerte à própria sorte.
Das mãos aos prantos – eis o detalhe escancarado da incerteza: a ingrata sensação que fere as bases de qualquer escolha, condenada pelo crescimento silencioso do que existe somente na possibilidade.
Basta um sim para o resto não.
Desmorona-se, frágil, o horizonte dos caminhos não percorridos. A projeção que esperava ser memória, enquanto refém além da própria inexistência.
O que é real entre a estrada, a direção ou a dúvida?
Nada, senão a certeza que antecede a decisão. O respiro mais quente que de dentro redireciona todos os sentidos. Um movimento empurrado pela própria natureza. Quando a mente titubea e o coração dispara, vem da alma a dissolução do alívio.
Há, então, um momento.
Quando o peito estufa a confiança em sua forma mais inflamável. Um espetáculo interno de clareza e convicção, ao passo que toda e qualquer dúvida contagia-se com um movimento irresistível de mudança.
Único, momento.
A brecha no sedutor balé das possibilidades. A percepção finalmente imune às ilusões de traiçoeiras realidades. A terna lembrança do momento vigente.
Escolher é assustadoramente libertador. Se por um lado aponta o futuro do presente, por outro silencia a existência de outros tantos infinitos.
Muito do que passa pela minha cabeça se esvai sem qualquer recordação, salvo, a exceção de meu semblante.
O matutar pela vida via as ementas do pensamento em muito provoca somente a crescença do desentendimento.
Do alto de onde não estou, a percepção desses movimentos terceiros pouco complementam o que mais importa: sentir-se bem.
Desde então, desentendo. Quanto mais, melhor! Deixo passar os sentidos que fogem ao meu alcance. Respiro, pois, respirar, definitivamente, é a resposta mais apropriada a inumeráveis perguntas que nos sobram dessa vida.
Dos muitos caminhos que já passei, poucos trouxeram tanto conforto quanto acompanhar o percorrer do ar em meu corpo. Melhora até o captar da visão – percebi! – meio a alívios, em concordância com minha mente.
Aos poucos, sobrou para o resto do corpo – e bom que foi gradativo, pois todo instante nasce para merecer.
Entende o mundo com a sola do pé. Precisa sentir, sujar-se, entregar-se em toque e alma para saber o que é. Corre com o vento, contra o vento, sem sequer ligar pra ele. Faz seguir a direção da descoberta.
Pisa no gramado, em companhia ao jardim. Não lhe pertence fugir da lama. Vê nas folhas um caminho a desviar. Brinca, brinca até encontrar outro motivo para brincar.
Criança não precisa de nada, por já ter tudo. Sobe o portão, escala a mureta. Busca no vazio a importância que ele tem. Afinal, é divertido dar significado às coisas. Toca na árvore, antes subi-la. E decide, tão justa a transposição dos segundos. Olha, toca, e deixa. Com a pureza, ainda, do anjo que nem se lembra ser. Ou, pela realidade, confunde-se.
Criança, quando fica em silêncio, é por escutar o cochicho da verdade. Sua vontade plena de querer viver, brincar. Corre, pula, tira o cabelo do rosto. Observa, sente e vai. Até quando volta, vai. Tudo é novo, intrigante, dá gargalhadas de prazer.
Criança anda despreocupada. Pega um graveto no chão sem pensar que pode ter formiga. Corre atrás do passarinho e só não voa por que não quer. Dá voz à natureza das coisas. Apoia num galho bamba, que há anos não havia de ser tocado. Este galho, que podia ser eu. Que te olha de longe, embora te respire ofegante. Nostálgico como a luz que denuncia o outono.
Crianças vão como o próprio tempo. No único sentido que se denota – onde o presente abre a gaiola para o futuro. Adulto nasce quando, ao escorregar o olhar em outras direções, compõe o momento com entoações de saudades.
Desperta um homem pela manhã. Seus lentos olhos abrem, embora já atrasados para a cidade. Levanta-se, o homem, puxado, recorrido pelos anseios venenosos que o tiram o sono.
Ao banho, seu traje, hábitos de homem. Cruza cômodos, incômodo, deixando para trás sua oportunidade de descanso. Na cozinha, o último respiro. Busca ao redor, entre armários, dentro da geladeira – respostas, saídas.
Do que alimentar-se, quando o apetite falha?
Enxerga, o homem, um frasco de mel. Doce, saudável, um suspiro de vida. Em um canto isolado, uma garrafa indecisa. Convidado, caminha até ela, com olhar de agrado.
Segura-a, cai-se em surpresa: pares de formigas boiam, mortas, em plena recompensa ao êxtase – supõe. Mumificam-se, reféns de um sonho glorioso, na atmosfera mais abastada e afortunada de suas perspectivas.
Boiam, mortas.
Pequeno demais o mundo. Os sonhos. Do tamanho de uma garrafa. Doces crenças. O silêncio do universo coube naquela cozinha. O silêncio da percepção de um homem sobre sua natureza.
“Acrescente um pouco de nada à sua vida”, me disse um sábio, que não existe – “pois no vazio despretensioso que se cria no enquanto, quem sabe um vento não enxuga seus olhos.
Pensamentos também nascem quando a rotina se esquece.”
De enxergar todo o resto como uma unidade. Uma companhia a parte. Os detalhes, suas complexidades. O olhar como um resvalo, o passo passageiro.
Estar só é o que me dá sobrevida, psicanalise da alma. As interações com a natureza, plena, externa, beleza do meu ser.
Viajar sozinho restaura déficits do sentido.
Lembro que respiro, que sei olhar e apenas olhar. Revejo muito. Mútuo. Quando me dou conta, já esqueci de pensar por um tanto. Olho, enxergo, respiro. Respiro porque preciso de ar, que por sua vez precisa de espaço.
Movimentos de expansão. Tão mais importante que pensar. Do que mais me nutro – momentos. Verdadeiros, pois, coexistimos.
Novamente, refugiei-me nos lençóis da distância. Longe da minha realidade mais familiar, insisto em viver sob o céu que não conheço, a fim de esperar por lampejos de reflexão, que em casa já não sei mais ouvir.
Só de não andar preocupado, a objetividade que falta em meu caminhar sobra no discernimento de meus pensamentos. Quando não há pressa nem atraso, qualquer sensação tem o direito de tomar seu tempo.
Livre, acompanha-me pelas ruas o meu diálogo particular. Penso, vejo, penso. Argumentos vão e vem. Como pessoas, que levam adiante de mim algo que deixo com elas, para trás.
Um olhar, uma palavra, uma ilusão não terminada. Conversas desconhecidas sem nenhuma pretensão, a não ser as demandas do momento. Assim, o tempo só passa quando eu o faço passar.
Encontro em cada esquina um motivo para dobrar a rua: nenhum. Viajar é viver um mosaico, onde cada momento que se constrói é o pedaço de um significado, cuja grandeza não se faz entender no instante em que se vive.