Peguei o metro que nunca pego, saltei na estação que nunca salto, e caminhei como nunca – calmo. Sem pressa, parei.
O vento, como um filho bastardo de um inverno qualquer, me convenceu a tomar um café. Sozinho, e, no meio do caminho, eu parei.
Sentei-me como forma de declínio. Alterei meus próprios planos sem aviso prévio e cessei minha trajetória. Refutei, me opus, resignei. Repentinamente, saí da rota. Alguns olhares até me reprovaram enquanto seguiam.
Foi quando parei enquanto todos passavam. De fora, vi a pressa no pisar de cada passo impaciente. De longe, uma ansiedade urgente em olhares que, se por segundos me encaravam, logo tornavam a mirar além. E iam.
Antes a lentidão daquele meu pequeno presente à sofreguidão daqueles rastros insensatos. Eles parecem renunciar ao momento! Mal digeriram o passado e já nem mastigam o futuro. Dispersos!
Enquanto isso, eu vi. Alienei-me por opção.
E não há meio termo para o porvir. A sincronia perfeita dos acontecimentos é reveladora. Eu poderia estar olhando para a direita e não para a esquerda; ou até mesmo amarrando os sapatos, com minha vista entornada para baixo. Mas não.
Quando passou por mim, logo senti. Não poderia haver outro momento. Isenta ao vai e vem interminável de pessoas pelo salão; imune entre a esquizofrenia incessante desses átomos civilizados. Pude percebê-la na frequência mais baixa.
A inspiração não foge. Muito pelo contrário. A inspiração está entre nós. Infiltrada em nossos caminhos, camuflada em nossa cegueira, despercebida em nossa insensibilidade. Ela caminha segura de si e, pior, só se entrega para quem olha em seus olhos.
E, então, parado, pude ver. A própria bondade de alguns instantes. Vi o amor caminhando nas mãos dadas de desconhecidos amantes, vi pais e filhos indo a uma mesma direção e vi pessoas que, por instantes paravam, e logo seguiam. Vi a própria vida – plural, indiferente e contínua.
Quando parado, percebi que a vida só precisa mesmo é de atenção. O que muitos acham que são por acaso, tantos outros acham que são o destino. Se me perguntam o que acho, para ambos sorrio.
Há um mês comecei algo. Dei voz, confiei. Fui em frente.
Acreditei, e fiz.
E, em um mês, muito pode acontecer. E acontece. Uma vida muda, muitas acabam e outras nascem. Renascem. Ciclos se iniciam, dão vez a outros e novos caminhos se apresentam para velhos olhares.
Lá se foram mais quatro semanas. O tempo realmente voa. Se tanta coisa aconteceu na minha vida, imagina no mundo. Quantas coisas não foram perdidas e conquistadas? Quanto valor não foi descoberto e quanta vida não foi mudada?
Por quantas pessoas eu não cruzei na rua? Tudo que passei, poderia agora ser diferente.
Há trinta dias eu era outra pessoa. Em algum outro tempo, em outro lugar, convivendo com alguns sentimentos e sendo bombardeado por outros pensamentos. Alguns seguem, outros já perderam sentido. Piadas e tragédias flutuam na bipolaridade do mar dos pontos de vistas.
Em um mês fiz tantas coisas. Boas, ruins; sinceras, forçadas. Entre o orgulho e o arrependimento está o selo do fato – passou. A vida mudou. Não presenciei grandes eventos nem grandes milagres. Foi só o tempo que passou. E com ele, a faxina que expurga tudo aquilo que não tem raiz para ficar.
Quantas verdades agora já me contradizem; quantos dias não foram marcantes. Um mês é muito tempo, e um dia também. Uma hora é, sim, muito tempo. A mudança não precisa de muito, ela só precisa ser.
Um momento, agora.
Há um mês, criei este presente. Tão definitivo quanto instável. Que já vai passar.
Certa noite fui convidado a uma luta que eu não queria lutar. Não que eu seja um covarde, mas pense comigo.
A luz estava apagada e a temperatura perfeita. Para completar o enredo, dois travesseiros, uma almofada e um edredom. Eu já estava prestes a dormir!
A primeira vez que o escutei, pressenti uma ameaça. Ainda com os olhos fechados, me fingi de morto e torci para que aquele pesadelo não se iniciasse. Contei segundo após segundo com a esperança de que ele não me visse. E, de repente, um silêncio absoluto.
O primeiro rasante pareceu ser só um alerta. Pela potência sonora, o mosquito era um dos grandes e estava faminto. O segundo ataque era questão de tempo.
Ele veio.
Pude escutar sua vinda. Imediatamente, uma cena veio à cabeça: eu via seu sorriso sádico, sedento por sangue, marchando em minha direção ao som de “Cavalgada das Valquirias” – um massacre estava por começar.
Primeiro tentei uma armadilha. Ofereci meu ouvido como isca; os olhos estavam abertos como um sentinela e as mãos prontas para golpeá-lo. Senti sua presença próxima ao meu rosto e acertei um impiedoso tapa em minha própria cara – não há vitória sem sacrifício.
Minha alegria durou menos de cinco minutos e logo ouvi o amedrontador som de seu voo novamente. Naquele momento eu tinha um rosto vermelho, um medo crescente e uma ilusão de vitória.
Para ganhar tempo, escondi minha cabeça embaixo do travesseiro, reforcei com o edredom e junto à parede da cama improvisei um bunker.
Passaram-se dois minutos e eu já estava pedindo arrego. Dificuldade em respirar, calor e desconforto. Retirei a proteção e depositei toda minha fé em um código biológico de ética universal – “se um não quer, dois não brigam.”.
Ele me deu cinco minutos de trégua e voltou como um fantasma.
De Sun Tzu à Darwin, procurei explicações para a superioridade do meu adversário no confronto. Considerei um acordo – deixaria meu braço de fora e tentaria dormir: os dois sairiam satisfeitos.
Pois, resolvi enfrentá-lo.
Levantei-me, acendi a luz e incorporei um caçador. Esqueci meus problemas, a hora, o sono e minha compaixão. Era um vingador inapelável. Logo resgatei um spray e recorri, inclusive, às armas químicas.
Em um ataque resolvi o problema.
E não me arrependo.
Mas com aquela noite aprendi – se um dia sentir-se pequeno para realizar algum feito, lembre-se do dano que um mosquito pode causar em sua noite de sono.
Não foi nem um pássaro nem com cantos de galo que acordei. O despertador vociferava aos meus ouvidos para que eu já despertasse em um estado de agressividade e pressa.
Levanto e junto comigo o meu cansaço. “Nem dormi e já está na hora”, pensei. Pensei não, resmunguei. Aos meus olhos, meu quarto oferece um irresistível aconchego cinco estrelas. Se ontem rolei horas antes de dormir, neste momento minha cama me chama mais que o canto de uma sereia.
Venço a tentação e me dirijo ao banheiro. No banho, incorporo o arquiteto da rotina – decido que roupa eu vou vestir, o que vou comer no café da manhã, qual minuto exato preciso sair de casa e, quando sobra tempo, faço uma conta rápida para calcular em quantas horas estarei de volta ao meu querido lar – geralmente é desanimador.
Enquanto me enxugo, repasso o plano na cabeça. Visualizo em que gaveta está aquela meia e faço um raio-x mental se tenho tudo o que preciso na mochila. Ela provavelmente está na mesma posição que a joguei ontem à noite.
Macaco velho que sou, coloco o sanduíche para tostar e ligo a cafeteira enquanto, em paralelo, ganho tempo para terminar de me arrumar – minha manhã já começa com conceito de produtividade máxima.
Que minha nutricionista não leia isto, mas tomo minha primeira refeição em pé. De um lado para o outro, me preocupo para que o farelo do pão não caia pela casa enquanto executo tarefas pontuais. Do contrário, não consigo sair no horário arquitetado no banho.
Olho para o relógio e cinco segundos depois preciso olhar de novo. “Que horas são mesmo?”, me pergunto. São tantas coisas na cabeça que não consigo assimilar o horário de primeira, necessito revê-lo umas duas ou três vezes até entender que estou atrasado.
Checo se a casa está toda trancada, escovo os dentes em velocidade recorde e dou o último trato no visual. Penso na minha cama novamente, mas sigo em frente e supero.
No caminho para o trabalho o trânsito me entorpece. Dá até preguiça de se estressar. Estou tão cansado que se cochilo por alguns minutos parece que entrei em coma.
Pela quarta vez consecutiva dou uma geral no meu celular para procurar alguma novidade que me entretenha. Já esgotei todas. Das centenas de músicas que possuo no meu acervo pessoal, nenhuma parece servir.
Escutar o rádio, pior ainda. Entre notícias ruins e horríveis sobre crimes e assassinatos, sou informado daquela mesma batida naquele mesmo ponto que ontem também estava trânsito. Conheço o discurso tão bem que poderia até substituir o tal repórter aéreo.
Chego perto do meu trabalho e, naquela última caminhada antes de entrar no escritório, deixo de lado meu aspecto zumbi e finjo que sou a pessoa mais disposta daquela manhã. Desejo um “bom dia!” com a falsidade de um comercial de margarina.
Já no trabalho, o piloto é automático – me atualizo sobre o noticiário do dia, trabalho um pouco; comentam comigo sobre algum acontecimento inútil da vida de alguém e trabalho mais um pouco. No horário do almoço, alguém me confessa como está ansioso pelas férias e que não aguenta mais aquela rotina. Volto para o trabalho e planejo tomar um café ou ir ao banheiro com a esperança de ‘gastar’ preciosos minutos. Trabalho mais um pouco e logo começo a me concentrar em três tarefas – terminar o mais rápido possível o que estou fazendo, rezar para nada novo aparecer e inicio a contagem regressiva para ir embora.
Saio do escritório e já está escuro. Praticamente nem vi o Sol hoje. Mentira, alguém postou uma foto de pôr do sol e eu vi pela internet. Será que isso conta?
O trânsito da volta não merece nem comentários. A sensação de voltar para a casa talvez seja a mesma daqueles filmes de guerra, no qual o soldado retorna à sua amada depois de caminhar por planícies e desertos.
Abro a porta, acendo a luz e tranco a fechadura. Ainda no automático, só dou conta de que estou em casa quando escuto o barulho que as chaves produzem ao encontrar o balcão da cozinha ou a mesa da sala. Este sim é o sinal que me diz que estou finalmente de volta.
Jogo minha bolsa em qualquer canto e me dirijo para a ducha como se fosse um banho turco. Lá, entro em alfa.
Mais tarde, na cama, não consigo dormir. Meu corpo sequer reage, no entanto minha mente funciona a todo vapor. Penso em tanta coisa que nem sei o que penso. Não sei se assisto a TV, mexo no meu celular, leio um livro ou tento fazer tudo ao mesmo tempo. Rolo na cama e quando quase pego no sono me lembro de uma tarefa – “Ah, o despertador.”.
As horas avançam e começo a me preocupar com o dia seguinte. Aumento sobre mim a pressão para dormir e, claro, não durmo. Pouco a pouco, dou voz ao filósofo que me torno quando o teto do meu quarto se torna meu horizonte.
Repenso minha vida e revivo alguns sonhos. Por alguns momentos imagino cenas que me dão uma sensação tão boa. Viajo em outros paralelos e encontro o conforto que me carece. “E se…”.
Reflito, respiro e bocejo. Não concluo nenhum dos três e antes que repare, dormi.