“Vi que as tardes são mais aproveitadas pelas garças do que pelos homens.” Manoel de Barros
Tenho dificuldade em dar títulos às coisas. Todas aquelas sem nomes, sentido definido ou função importantitória. Aquelas coisas meio sem rima, das poesias de Manoel.
Meus textos carecem de utilidade. Das incompletudes figurativas, do toque final das frases soltas, sem inícios. Invento palavras por não saber o que dizer. Jogo-as para fora de mim. Alívios, (envergonhados).
Escrevo sem meios, meio sem fim; pois, começo por falta de sentido. Escrevo porque não entendo. A natureza que só existe e não busca se explicar. A natureza de Pessoa. A natureza de Manoel. A natureza perdida que meus olhos, às vezes, se lembram de ver.
E não muitas outras vezes, escuto-vejo pássaros como as árvores desse mesmo Manoel. Aquela falta de importância na vida. E tantas suas outras coisas que merecem ser notadas por não serem, absolutamente, nada.
Olho para tantos nadas com a nostalgia de uma pedra. Um anônimo sentimento de vazio. Um azul meio cinza, sem graça como palavras no diminutivo. A respiração falseia, sem cor. Titubeia, por falta de galhos.
Também queria ser árvore, para não ligar para palavras nem significados ocos. Vigiaria o sigilo dos qualqueres, silencioso às importâncias. Estar seria minha postura de viver: sonho dos herdeiros da poesia – tornar-se, enfim, paisagem.
Entre a expectativa e a memória, existe um ponto de realidade, com outras cores e outros sons. Novos ares, como uma nova dose, resistentes à renovação.
A mesma rua, por ora, é outra rua. A mesma rua, outro sou eu.
Confundimo-nos.
Ela, vaga ao egoísmo da minha lembrança; eu, pleno em sua realidade mais nua. Incompatível ao meu estar. Ao meu olhar de significação. Sinais escorridos pelo tempo, com o tempo. Para outros tempos…
Revisitar um lugar para reviver uma memória – quem nunca?
A experiência, no entanto, muda a consciência. Isso só se percebe depois. Um movimento de avanço. Percebido pelo retorno.
Retornar. Retomar.
Vive-se um esvaziamento de significado da rotina, do passado e do presente. Uma nova perspectiva precisa de espaço para crescer. De credo para existir.
Preciosa como uma semente, a mente de quem retorna. Pelo o olhar da inconsciência, porém, nenhuma viagem oferece regressos.
Como a vida e tantas outras coisas pequenas, a natureza de seu caminho é a continuidade.
De repente e, dia após dia, ele queria ser grande. A vontade de crescer, o descontentamento com a idade. O tamanho não compartia tamanhos anseios. Os desejos de ser eram maiores do que se era. Um outono por ano ainda parecia insuficiente. Queria mais, e cada vez mais rápido.
Como se o tempo não passasse o suficiente.
Queria pular o que não havia nem visto. Lembrar o que não viu ou até mesmo ser sem sequer ter sido. Queria ter sentido, sem antes sentir. Sem enquanto, nem durante, nem nunca.
Criança deixou de ser quando ainda era. Um dia, grande queria ser em pensamentos. Logo eram desejos transformados em palavras. Cresceu despercebendo a beleza em ser exatamente o que se era.
Ao olhar para o futuro, as vontades e os desejos, não o deixavam sentir os problemas que só o presente é capaz de oferecer. As brincadeiras viviam a realidade pelo ombro da fantasia. Como era bom ser gente grande, quando ainda não se se era.
Cresceu, de fato.
Ora grande, quando só, lembrou de anseios como se pensa em besteiras. Ao olhar para as paredes, fotos soltas em histórias antigas. Parte do que esqueceu-se de esquecer por inteiro.
Eram lembranças querendo atenção. Nada que o tempo não leve. Ele sempre levou.
– Como escolher por retratar a felicidade, no exato segundo de cada momento? –perguntou.
Coube ao olhar de Osvaldo, professor de nada, embora reconhecido mestre de assuntos serenos, resguardar-se no silêncio, para só então responder:
– Dê vida à morte.
Aprendizados, quando engravidados por metáforas, possuem uma gestação preciosa.
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Em outro momento da vida de Sandra, uma chuva levou todas as opções da tarde e fez da janela um observatório da vida. O vento que falava de tédio era frio feito vidro suado.
Uma fileira de formigas cruzava os respingos do mármore e desconfiança terceiras. Eis que a moça aproximou seu olhar ao ponto de desfocar os detalhes.
Um grande suspiro trouxe do menor dos mundos: a afirmação da existência é a própria negação da morte.
A primeira vez que saí para viajar, sequer imaginei o passo que estava dando. Para mim, parecia um processo ditado por previsões. A mala era pensada a partir das roupas já decididas para cada dia e ocasião. Os dias eram resumidos a roteiros, com rigidez de horário e passeios programados. Sem esquecer do aval, até mesmo, da previsão do tempo.
Se alguém me falasse da magia, não chegaria nem perto de acreditar. Sensações não gostam mesmo de palavras. Sequer desconfiava que a distância era o impulso da liberdade.
Descobri os prazeres de viajar, apenas, quando refletidos em mim. Um latente enriquecimento baseado num encontro de vidas – especialmente daquelas que, se não fosse a viagem, nunca se cruzariam.
Com o tempo, ele mesmo me convenceu a trocar a mala por um mochilão. Aonde ir se tornou mais importante que saber onde ficar. O destino cedeu espaço para o trajeto. O caminho reinventou a linguagem dos significados, além da condição de existência entre dois pontos.
Passei a prestar mais atenção nas pessoas que nas estátuas. Foi quando aprendi a me envolver, de fato, com a importância de uma história. Meus critérios de avaliação passaram a considerar mais os sorrisos que as estrelas de fachada.
Assim, entre famílias e hotéis, preferi tornar-me hóspede por convite.
Viajar sozinho, definitivamente, foi a melhor maneira de descobrir que o melhor parceiro de viagem encontra-se dentro de si. Além da própria evolução, há momentos de pausa e silêncio, herdeiros da verdadeira liberdade.
Quando só, o horário e o destino deixam de pertencer ao consenso. O compromisso segue marcado com o acaso. Segundo o manual dos viajantes, a correnteza prevalece quando não há bordas nem mãos para segurar. Isso, também, me contou uma nuvem.
Uma mochila nas costas, somado a um lugar desconhecido, parece aguçar a sensibilidade. É como se houvesse mais poesia no olhar. O viajante resgata a beleza que a rotina enxuga. Como a chuva que, mediante seu aroma, embeleza o tempo livre das tardes.
Viajar é perceber a sutileza do que tem tudo para passar despercebido.
Quando não há ninguém para conversar, aliás, aprende-se a falar com o silêncio. Na prosa dos pensamentos ou na inspiração das reflexões, torna-se possível descobrir o caminho da própria paz.
Viajar é um constante movimento – por essência, bastante controverso – que se equilibra no colo da pausa. Pequenas ou grandes, a realidade se faz presente. Pelo concreto ou nos seios do abstrato, o dueto do agora. Entre todos os caminhos e as escolhas feitas, experiências e aprendizados são tão subjetivos como idas e vindas. No meio tempo de qualquer momento, com a permissão do fuso, viajar é a chance de nascer de novo.
Um outono me disse que outros virão. Quanto ao tempo, tranquilizei-me.
Foi tamanha certeza que me deu segurança para seguir incerto. Perto do longe, por um pouco mais de tempo.
Caminhei por vilas, com becos guardados de silêncio e sombra. Nada que desse mais medo que estar forrado em lãs, guardado do céu. Justamente quando não tive endereço, senti a presença de casa.
Sem nuvens, por terra, pisei sensível para me guiar sem chão. Entre pegadas e memórias, optei pelo qual podia levar comigo.
Vi o verão tirar férias em outro lugar. Sempre um prazer.
Continuei e não só meu cabelo cresceu. Quanto mais calado, mais meus pensamentos me ensinaram a hora exata de falar. Logo descobri que eram raras.
Por falar em memórias, se bem me lembro, reparei mais folhas que pedras no caminho.
Levei meses para entender que a primavera estava em meus olhos.
Para quem não hesita em buscar, encontra-se cada vez mais acessível histórias de pessoas que passaram a escolher viajar por uma questão maior que o próprio destino da viagem.
Não é difícil achar, muito menos entender, casos de quem largou tudo para simplesmente sair em busca de algo maior. Reconstroem suas vidas, passam meses na estrada ou somente vão.
Aquele que nunca vai provavelmente acredita que viajar desta forma é uma ideia arriscada. Pode achar que é uma perda de tempo, ancorada por uma má decisão, do qual não há nenhum retorno tangível, além de fotos e presentes.
Nós, entretanto, vemos outro risco – deixar a rotina camuflar o dinamismo natural da vida.
Viajar é um investimento orgânico. Um processo de mudança de consciência. Por definição, envolve muito mais que o aspecto presencial. Quando se sai de onde está, saem também medos, pensamentos e limites.
Abre-se espaço, então, para o enriquecimento cultural. Um arsenal de experiências que servem de subsídio para novas formas de pensar e agir. Princípio de mudanças tanto na esfera pessoal quanto nos campos profissionais.
Geralmente, quem passa a viver desta maneira, costuma concordar que o fato, quando acontece na rua, tem mais verdade que no noticiário. A imperfeição da visão dos olhos, às vezes, tem mais valor que a lente de uma câmera. Ou que, nem de longe, o silêncio das paisagens está retratado nos quadros.
É um câmbio de valores. Uma nova possibilidade de enxergar o que está ao redor. Seja por novos filtros ou além das camadas.
Todavia, há quem siga com medo de encarar mudanças. Sem sequer desconfiar que o medo de perder o que se tem é o que priva de ter mais. A falsa segurança da estabilidade cria uma realidade frágil e camuflada. Tudo que está no contorno, está prestes a transformar.
Nada se isola da mudança.
Há um grande risco ao apostar em raízes, num mundo que os ventos têm forças suficientes para mudar direções.
Não sei exatamente se há um momento chave. Muito menos sei descrever a gota fotografada no flagrante do transbordo. Seu tamanho, densidade ou relevância. A única condição que exige o desencadeamento de uma mudança é o fim da validade de um ato.
Tudo que começa no silêncio encontra uma maneira de conseguir sair.
Cedo ou tarde, eis a hora que não dá mais: a rescisão deixa de ser uma ideia. É necessária uma ruptura. A começar pelo basta de tudo aquilo que não se suporta mais.
Na esquina do limite não há espaço para fazer retorno. Tem-se apenas o que se permite. Leva-se somente o que cabe. Andar para frente sem olhar para trás.
Decisões adiadas, já cansadas de esperar. O tormento de sonhos exilados. O futuro também sabe enviar fantasmas. Tantas linhas – em vão tecidas – viraram nós. Ou contra nós.
“Chega!”.
Quando ergue-se o muro do basta, destacam-se, à vista, apenas tudo que tem espaço para crescer. Inegavelmente claro não por ter mais altura, mas pela vitalidade de suas raízes.
A voz do “chega” tem um tom de cansaço. Um pouco mais reticente, pode-se dizer. Aprendeu, controversamente, a importância em valorizar as escolhas francas. Nas apostas da vida com o tempo, raramente duram os blefes.
Nega-se com mais certeza. Escolhe-se, consentido de convicção. Maturidade talvez seja enfrentar o próprio caminho e ir de encontro ao tropeço de suas próprias pedras.
O abraço paterno às consequências. Aceitar – com a consciência de quem pôde decidir.