Se as roupas já não me vestem mais, os velhos brinquedos tampouco me servem. Daquelas figurinhas que eu colecionava e dos tantos álbuns que eu quase completei, nenhum deles tem mais espaço em minhas atuais coleções. Daquele tempo, trago comigo uma porção de risadas e cicatrizes de uns velhos machucados.
Lembro-me, também, de amigos que não vejo desde aquela época, cada rosto inocentemente travesso. Chego a rir sozinho das tantas descobertas e aventuras que nos metíamos. Por onde será que eles andam agora…
Da minha adolescência, creio, também não levo nada físico.
Sumi com aqueles CDs e nunca mais vi o pôster daquela banda que nem é mais a minha favorita. Até minha memória deixou de lado trechos seletos de velhas canções. Perdi o quadro que fiz com o ingresso, mas carrego comigo aquele show – como poderia esquecê-lo – talvez tenha sido a primeira vez em minha vida que me senti independente.
Já não sei mais onde está o cordão que ganhei da minha primeira namorada. Daquele dia, lembro-me apenas da marca que fizemos na árvore com as iniciais dos nossos nomes. Aliás, lembro-me de tantos momentos que jurávamos ser eternos. De todos os presentes que trocamos, hoje levo comigo apenas boas histórias e experiências.
Da adolescência carrego com carinho as minhas primeiras viagens, as primeiras bebedeiras, os momentos compartilhados com aqueles amigos que, quem diria, são meus amigos até hoje.
Na verdade, vou me contrariar. Tenho lembranças físicas sim. Às vezes, inclusive, recorro às fotos que ficam lá em cima do armário. Perco horas naquela gaveta empoeirada, e encontro em cada recordação um atalho para reaquecer minha vida. Não chego a voltar no tempo, mas nem precisaria. Dou àquela velha experiência mais um dia de vida, faço a prolongar-se.
E talvez isso queira dizer algo: de repente, entre o preço e a finitude do que é material, ou entre as inúmeras ilusões que nos entretêm, o que verdadeiramente importa desta vida está no valor e na eternidade das boas experiências.
Hoje, cada vez mais, busco entender e quantificar o valor de cada momento, de cada sorriso e de cada escolha. Se prestigio boas experiências, automaticamente fabrico boas memórias. E é isso que espero levar; este é o verdadeiro fardo de nossa riqueza; pois, do que levo do meu passado, nada físico levamos desta vida.
Não foi nem um pássaro nem com cantos de galo que acordei. O despertador vociferava aos meus ouvidos para que eu já despertasse em um estado de agressividade e pressa.
Levanto e junto comigo o meu cansaço. “Nem dormi e já está na hora”, pensei. Pensei não, resmunguei. Aos meus olhos, meu quarto oferece um irresistível aconchego cinco estrelas. Se ontem rolei horas antes de dormir, neste momento minha cama me chama mais que o canto de uma sereia.
Venço a tentação e me dirijo ao banheiro. No banho, incorporo o arquiteto da rotina – decido que roupa eu vou vestir, o que vou comer no café da manhã, qual minuto exato preciso sair de casa e, quando sobra tempo, faço uma conta rápida para calcular em quantas horas estarei de volta ao meu querido lar – geralmente é desanimador.
Enquanto me enxugo, repasso o plano na cabeça. Visualizo em que gaveta está aquela meia e faço um raio-x mental se tenho tudo o que preciso na mochila. Ela provavelmente está na mesma posição que a joguei ontem à noite.
Macaco velho que sou, coloco o sanduíche para tostar e ligo a cafeteira enquanto, em paralelo, ganho tempo para terminar de me arrumar – minha manhã já começa com conceito de produtividade máxima.
Que minha nutricionista não leia isto, mas tomo minha primeira refeição em pé. De um lado para o outro, me preocupo para que o farelo do pão não caia pela casa enquanto executo tarefas pontuais. Do contrário, não consigo sair no horário arquitetado no banho.
Olho para o relógio e cinco segundos depois preciso olhar de novo. “Que horas são mesmo?”, me pergunto. São tantas coisas na cabeça que não consigo assimilar o horário de primeira, necessito revê-lo umas duas ou três vezes até entender que estou atrasado.
Checo se a casa está toda trancada, escovo os dentes em velocidade recorde e dou o último trato no visual. Penso na minha cama novamente, mas sigo em frente e supero.
No caminho para o trabalho o trânsito me entorpece. Dá até preguiça de se estressar. Estou tão cansado que se cochilo por alguns minutos parece que entrei em coma.
Pela quarta vez consecutiva dou uma geral no meu celular para procurar alguma novidade que me entretenha. Já esgotei todas. Das centenas de músicas que possuo no meu acervo pessoal, nenhuma parece servir.
Escutar o rádio, pior ainda. Entre notícias ruins e horríveis sobre crimes e assassinatos, sou informado daquela mesma batida naquele mesmo ponto que ontem também estava trânsito. Conheço o discurso tão bem que poderia até substituir o tal repórter aéreo.
Chego perto do meu trabalho e, naquela última caminhada antes de entrar no escritório, deixo de lado meu aspecto zumbi e finjo que sou a pessoa mais disposta daquela manhã. Desejo um “bom dia!” com a falsidade de um comercial de margarina.
Já no trabalho, o piloto é automático – me atualizo sobre o noticiário do dia, trabalho um pouco; comentam comigo sobre algum acontecimento inútil da vida de alguém e trabalho mais um pouco. No horário do almoço, alguém me confessa como está ansioso pelas férias e que não aguenta mais aquela rotina. Volto para o trabalho e planejo tomar um café ou ir ao banheiro com a esperança de ‘gastar’ preciosos minutos. Trabalho mais um pouco e logo começo a me concentrar em três tarefas – terminar o mais rápido possível o que estou fazendo, rezar para nada novo aparecer e inicio a contagem regressiva para ir embora.
Saio do escritório e já está escuro. Praticamente nem vi o Sol hoje. Mentira, alguém postou uma foto de pôr do sol e eu vi pela internet. Será que isso conta?
O trânsito da volta não merece nem comentários. A sensação de voltar para a casa talvez seja a mesma daqueles filmes de guerra, no qual o soldado retorna à sua amada depois de caminhar por planícies e desertos.
Abro a porta, acendo a luz e tranco a fechadura. Ainda no automático, só dou conta de que estou em casa quando escuto o barulho que as chaves produzem ao encontrar o balcão da cozinha ou a mesa da sala. Este sim é o sinal que me diz que estou finalmente de volta.
Jogo minha bolsa em qualquer canto e me dirijo para a ducha como se fosse um banho turco. Lá, entro em alfa.
Mais tarde, na cama, não consigo dormir. Meu corpo sequer reage, no entanto minha mente funciona a todo vapor. Penso em tanta coisa que nem sei o que penso. Não sei se assisto a TV, mexo no meu celular, leio um livro ou tento fazer tudo ao mesmo tempo. Rolo na cama e quando quase pego no sono me lembro de uma tarefa – “Ah, o despertador.”.
As horas avançam e começo a me preocupar com o dia seguinte. Aumento sobre mim a pressão para dormir e, claro, não durmo. Pouco a pouco, dou voz ao filósofo que me torno quando o teto do meu quarto se torna meu horizonte.
Repenso minha vida e revivo alguns sonhos. Por alguns momentos imagino cenas que me dão uma sensação tão boa. Viajo em outros paralelos e encontro o conforto que me carece. “E se…”.
Reflito, respiro e bocejo. Não concluo nenhum dos três e antes que repare, dormi.
Aquela sequência de acontecimentos nada cinzas e cheios de vida. Um momento que minha única atividade era ser feliz. Que meus problemas eram logo superados e que eu era bobo suficiente para não dá-los tanta atenção.
Nesse dia, me lembro, fui perguntado sobre o que eu queria ser quando crescer. Não soube responder, pois viver já me bastava. Como eu seria capaz de responder isso se era tão mais importante decidir se eu iria jogar vídeo game ou assistir o desenho animado que acabara de começar?
Um doce sonho de menino.
Intrigava-me como contas que chegavam pelo correio causavam mal-estar na “gente grande”. Um quarto escuro me parecia tão mais amedrontador que este pequeno pedaço de papel.
Quando meu maior medo era do escuro, me confortava saber que meu maior desafio fora conseguir andar. Eu, que já havia ficado de pé sozinho, agora criava a minha própria distância do horizonte. Mas o escuro ainda dava medo mesmo assim.
Naquele dia, meu amanhã só aparecia mesmo depois do hoje. Era sincero comigo e com todos ao meu redor. Lembro-me como eu era estranho à algumas coisas novas que a “gente grande” fazia.
Mas logo deixava de pensar e ia me divertir.
Hoje, confuso, não sei dizer se sonhei com a vida que tinha ou apenas lembrei do sonho que eu um dia vivi.
Só sei que, com o passar do tempo, aquela vida do menino mais me parecia um sonho mesmo. Tão simples e tão distante. Com uma ingênua sabedoria, a felicidade era o caminho e a razão primária de tudo.
Das camuflagens que hoje visto, dos problemas que hoje enxergo e do amanha que hoje vivo, fiz daquela vida apenas um sonho e vi o menino tornar-se o homem que não entendia.
Hoje não tenho mais medo do escuro. Pior, tenho medo do que é cinza.
Quem diria que, no final das contas, entre aquele menino e eu, ele vivia enquanto eu sonhava.
Incorporo à minha escrita uma forma pessoal e inédita de me manifestar. Expresso, à minha maneira, construções de pensamentos, ideias e – quem escreve, sabe – desafogo porções e mais porções de nós que entopem minha mente diariamente.
Enxergo na escrita minha forma de arte. Meu jeito de deixar uma tatuagem no mundo. Não necessariamente um trabalho, mas uma esfera que busco desenvolver. Acredito que todos deveriam dedicar parte de sua vida a uma forma artística.
Entendo como “arte” qualquer forma de expressão que se origina da mais pura pessoalidade. Alguns o fazem como carreira, outros como hobby. Mas, sem dúvidas, a arte precisa ter seu espaço, assim como se concilia a profissão, a espiritualidade, vida social, esportes etc.
Sou, como muitos, um admirador da linguagem. Juntar palavras não só é minha maneira de expressar o que penso, como se tornou um caminho para manifestar o que sinto.
Gosto de escrever porque é infinito. Palavras assumem significados, que mudam e alcançam diferentes pontos de interpretação. A arte vai além da precisão dos nossos sentidos; o sentimento a altera, o momento a modifica, o contexto interage.
Gosto de escrever porque a escrita flutua. Ela não é uma obra pronta, com um significado preso em si. Ela alcança em cada um diferentes interpretações, adquire em cada momento sua própria versão. Varia junto ao tempo, às experiências e às identificações.
Gosto de escrever porque crio, apago, decido por vírgulas ou ponto final. Opto por novos parágrafos ou mais travessões. Dou vida, forma e sentido a uma própria expressão de mim. E melhor – que pode encontrar em outros uma nova tradução.
Assim sigo escrevendo. Sem especializações ou gêneros, apenas me permito manifestar. Deixo para cada momento sua própria forma de inspiração, forma e conteúdo.
Encorajo a quem estiver disposto a me ouvir que realize suas próprias publicações pessoais. Escritos, desenhos, fotografias, músicas, seja o que for. Tudo que nós exteriorizamos leva consigo parte de nossa essência – do que somos, sentimos, pensamos e do que temos a oferecer de diferente.
A arte que nasce em mim, toma forma em si, e ganha vida em ti. Toda contribuição artística pressupõe o mesmo valor: nutrir a vida – de muitos, de um ou em si.